Introdução.
“O pensamento sensível, que
produz arte e cultura, é essencial para a libertação dos oprimidos, amplia e
aprofunda sua capacidade de conhecer. Só com cidadãos que, por todos os meios
simbólicos (palavras) e sensíveis (som e imagem), se tornam conscientes da
realidade em que vivem e das formas possíveis de transformá-la, só assim
surgirá, um dia, uma real democracia.” (BOAL. p 16).
RESUMO COMENTADO.
Boal fala sobre o analfabetismo
da palavra (escrita) e sobre o analfabetismo estético que nos impede de pensar,
de criar, de produzir conhecimento artístico. As sociedades capitalistas são
adestradas pelo pensamento único e dominante que busca determinar
comportamentos, ideias, sonhos, desejos, etc. Este pensamento se define como
único não por inevitavelmente o ser assim, mas por obrigatoriedade imposta por
quem o domina. Desta forma, o autoritarismo estético marginaliza toda e qualquer
outra forma de se pensar que não a deles. Esta forma de opressão se dá através
dos meios de comunicação, utilizando das imagens, sons e palavras. Mesmo que se
saiba ler e escrever, não se estará livre deste tipo de analfabetismo. É
preciso conscientizar-se a respeito da realidade para transformá-la.
“Arte é o objeto, material ou
imaterial. Estética é a forma de produzi-lo e percebê-lo. Arte está na coisa;
Estética, no sujeito e em seu olhar.” (BOAL. p 22).
Capítulo 1 - Os dois pensamentos, simbólico e
sensível – um novo conceito de aura e arte, uma Nova Estética.
O pensamento sensível e o pensamento simbólico na criação artística.
“Estética é uma relação
sujeito-objeto, concordo: o objeto de desejo depende do sujeito desejante para
que possa ser desejado – em si, não o é. (...) também assim a apreciação do Beijo de Judas, de Giotto, depende da
percepção de quem o mira – será beijo amigo ou trágica traição: a capacidade
perceptiva é condicionada pela religiosidade ou não do observador, e pelo seu
conhecimento histórico.” (BOAL. p 26).
“(...) mas afirmo que o ato de
pensar com palavras tem início nas sensações e, sem elas, não existiria, embora
delas se desprenda e se automatize até à sua mais total abstração.” (BOAL. p
27).
“Pensar é organizar o conhecimento
e transformá-lo em ação, que pode ser fala ou ato, sendo que fala é ato.
Pensamento é ação que transforma o pensador, o interlocutor e a relação entre
os dois. Que podem ser a mesma pessoa.” (BOAL. p 29).
Belo, Bonito e Feio.
“’O feio é belo!’ – não há nisto
nenhuma contradição, pois bela é a verdade escondida que a arte revela! O Belo
é o reluzir da verdade através dos meios sensoriais – dizem alguns filósofos, e
eu concordo; porém... qual verdade?” (BOAL. p 32).
As verdades de cada cultura.
“(...) Quando a cultura de uma
época ou país é universalmente aceita como sendo a melhor, única e mais
perfeita, é porque a opressão ali é universalmente exercida, sem contestação.”
(BOAL. p 36).
O sublime e a ética.
“Assim como a cosmetizada palavra
Estética, a Ética tem sido
amesquinhada quando entendida como sinônimo de bom comportamento. Ética é o
caminho por onde se pretende chegar ao sonho de humanizar a Humanidade. A ética
repugna a persistência do instinto predatório em sociedades humanas, cujos
resíduos selvagens ainda existem em nós. Contra o aspecto predatório animal do
ser humano, a ética busca criar relações solidárias.” (BOAL. p 39).
Um novo conceito de aura e arte, uma Nova Estética.
“(...) através dos tempos, houve
um deslocamento nas formas de apreciação da obra de arte e no seu uso. Esse
deslocamento vai do início da própria arte, quando desempenhava uma função
ritual, até os tempos modernos, quando, graças à multiplicação mecânica, pode-se
expor a mesma obra a um público diverso e heterogêneo, em muitos lugares e ao
mesmo tempo.” (BOAL, p. 41).
“Em que momento surge a aura? Sabemos que qualquer objeto,
qualquer que seja sua finalidade, deve ser construído antes de ser usado. No
caso de objetos artísticos – que são metáforas
substantivas, isto é, são matéria -, a sua construção física é anterior à
sua finalidade e aos significados que possam vir a ser, neles, projetados. A aura se desenvolve depois da criação do
objeto, não antes, quando só existia, imaterial, na mente do artista. A
construção do objeto de arte precede sua utilização, religiosa ou secular.”
(BOAL, p. 42).
“Também nos rituais da igreja
católica os sacerdotes escondiam o significado de suas missas em latim. A
democratização da fé operada pelo Concílio Vaticano II, ao permitir que as
missas fossem celebradas nas línguas locais dos fiéis, deu volta atrás com o
recente papa Bento XVI que, se não obrigou, ao menos permitiu que outra vez
fosse usado o latim diante dos fiéis, intimidados por essa língua, hoje solene.
Esse ato obscurantista teve a intenção de fortalecer a autoridade eclesiástica
aumentando a ignorância dos fiéis – o Mistério funciona como fonte de poder –
aquele que o possui, possui o poder da Revelação!”. (BOAL, p. 44).
1.1. O corpo humano, social desde antes de
nascer.
Um corpo vem ao mundo.
“Não possui nenhum conhecimento a priori, no sentido Kantiano, que
ultrapasse os limites do que lhe é orgânico e, nele, singular. Não é página
branca, pois traz consigo seus cinco sentidos, que mesmo antes do nascimento já
lhe provocavam prazeres e dores – emoções. Traz seu código genético, físicas
necessidades vitais e, mais tarde, desejos e subjetividades.” (BOAL, p. 50).
“Seus sentidos já existiam em
desenvolvimento dentro do ventre materno e já guardavam memórias. Mesmo antes
de estar formado, o cérebro é in-formado e as informações sensoriais
recebidas passam a fazer parte das suas estruturas sensitivas e, mais tarde,
cognitivas. A informação torna-se parte do seu sistema nervoso.” (BOAL, p. 51).
“As informações vindas de fora e
do corpo em fase de construção fazem com que os neurônios sejam formados socialmente (neurônios+informações
sensoriais) desde antes do nascimento do infante. Neurônios que, ao serem
produzidos, eram puros, já não o
serão ao se integrarem começando a trabalhar em equipe, jamais sozinhos!” (BOAL,
p. 53).
“(...) Quando algo grave e
emocionante acontece em algum estágio das nossas vidas, situações de risco e
perigo ou de intenso prazer, essas estruturas emocionais perduram vivas em
nossa memória oculta. Muitos desses eventos acontecem com violência no início
da puberdade. Quando, décadas mais tarde, uma nova situação a elas se
assemelha, regredimos àquela idade-refúgio e tendemos a agir como se ainda
tivéssemos aquela idade. Voltamos a ser crianças.” (BOAL, p. 56).
Sentidos são seletivos.
“Seus primeiros contatos com o
mundo exterior são de natureza sensorial. Alguns permanecem nesse nível, como a
dor de estômago, o frio e o quente, a fome. Quando, porém, são estruturados
pelo pensamento, tornam-se Estéticos.
A Estética nasce com o bebê – não há o que temer.” (BOAL, p. 58).
Cérebro e conhecimento.
“Sensações não nos vem isoladas
nem puras: recebem e produzem emoções específicas em momentos precisos. Se o
bebê mama, o estômago saciado e o sabor do leite se associam ao prazer de tocar
o corpo da mãe, sentir seu cheiro, ouvir sua voz. Se ouve um barulhento
caminhão, seu corpo estremece e perde harmonia, física e psíquica. Cada
sensação está envolta em emoções e memórias.” (BOAL, p. 60).
“Quanto mais se desenvolvem seus
músculos e se organizam seus sentidos, mais ele compreende que pode não apenas conhecer e se associar ao mundo, mas também transformá-lo.
Se levarmos uma criança à praia, com areia ela fará esculturas e se descobrirá
escultora. Se lhe dermos papel branco e lápis de cor, ela se descobrirá pintora.
Brincando com peças de madeira, a criança organiza esculturas como, mais tarde,
com palavras, organizará ideias e falas.” (BOAL, p. 61).
“Esta forma de pensar sem
palavras e de se relacionar com o mundo é uma forma estética de conhecê-lo. As linguagens estéticas – música, pintura,
dança etc. – são cognitivas, isto é, em si mesmas, são conhecimento. As
linguagens simbólicas – línguas: português, espanhol, inglês, francês,
esperanto, e as línguas regionais de surdos-mudos, gestos convencionados etc. –
são informativas: transportam conhecimento. A maneira de fazê-lo, no entanto, é
cognitiva.” (BOAL, p. 62).
1.2. Palavra, a maior invenção humana.
Gênese da palavra.
Do pensamento sensível nasce o pensamento simbólico.
“Significante (aquela mulher) e
significado (mãe) estão colados; só quando se descolam surge a linguagem
conceitual, simbólica. Só quando se triangula esta relação, aí começa o parto
do conceito. Quando o bebê percebe outra pessoa chamando outra mulher de mãe, quando vê filhos e mães, passa a
grupar essas unicidades em um conjunto. Surge a linguagem simbólica, formada
por conceitos descolados de realidades sensíveis.” (BOAL, p. 65).
“Em certas regiões da África,
orangotangos conseguem criar uma linguagem que inclui sons de convite ou
negação, chamamentos, etc. Um grito previne os filhotes de que não devem se
pendurar naquela árvore de galho quebrado – é perigosa. Mas esses primatas não
compreendem o conceito de perigo. Grito de advertência é relação concreta com a
árvore presente, mas não revela o perigo de todas as árvores de galhos quebrados
– só daquela.” (BOAL, p. 66).
“As necessidades e os desejos do
bebê mais avançado no tempo faz com que ele imite ou invente sons que se
transformarão em palavras. Com o surgimento do simbólico, as duas formas de
pensar passam a coexistir. O pensamento sensível busca a amplitude do simbólico
e quer falar, não apenas sentir. O pensamento simbólico busca a concreção do
sensível, quer sentir e fazer sentir, não apenas enunciar – a voz da palavra,
sensível, dá precisões concretas ao seu significado simbólico.” (BOAL, p. 67).
“Pelos estímulos repetidos, o
cérebro do infante começa a formar uma gramática residente em redes neuronais.
Esta é a gramática seminal,
constituída predominantemente por sujeito, verbo e objeto direto: eu quero aquilo. Gramática semelhante em
todas as línguas, porque semelhantes são as necessidades humanas básicas:
físicas, fisiológicas e sociais.” (BOAL, p. 68).
“Palavras são símbolos. Para que
um símbolo exista, é necessária a concordância dos interlocutores. Como quase
tudo na vida social, também as palavras se tornam objeto de encarniçadas lutas.
A etimologia mostra a correlação de forças da sociedade no momento em que
fabricou uma palavra a fim de revelar – ou esconder – a verdade. A semântica
torna-se um campo de batalha em que todas as forças em conflito procuram a cada
palavra, atribuir-lhe o sentido que mais lhe convenha. A luta semântica é luta
pelo Poder.” (BOAL, p. 70).
Do grito animal à palavra, da palavra à lei, e da lei ao dogma.
“Toda palavra é grito! Grito
primata e primário que permanece vivo no bojo de cada palavra que pronunciamos,
cada poema, frase de amor, cada artigo de cada lei.” (BOAL, p. 71).
"A lei, que resulta de uma estrutura beligerante de forças
políticas, morais, sociais e econômicas em cada sociedade e em cada momento da sua fabricação, é sempre apresentada não como
expressão da vontade dos vencedores, como de fato é, mas como inspiração do
genérico povo (...)"(BOAL, p. 71).
"Para que a lei permitisse a
existência de uma justiça ética e não apenas condenatória dos adversários e
absolutória dos aliados, deveria pesar fatos e significados, hierarquizados
pelo bem maior. Não é que acontece. Victor Hugo, irônico, comentou: 'A lei é
igual para todos: proíbe tanto ao pobre como ao rico roubar um pão para matar a
fome!'" (BOAL, p. 72).
“Seguir à risca, dogmaticamente,
a melhor cartilha ou o mais judicioso conselho pode-se revelar um desastre.
Conselhos e cartilhas podem ser símbolos de correto comportamento, mas
catastróficos se aplicados a situações concretas, diferentes daquelas que os
motivaram. Uma análise estrutural não pode ignorar conjunturas. Grandes erros
de opções políticas já foram cometidos adotando-se como dogmas certas análises
corretas de realidades feitas no passado em situações sociais revolutas.”
(BOAL, p. 74).
"A lei tem corpo e alma. O
corpo da lei existe em pedra ou papel - ele se aplica aos oprimidos. A alma se
inventa a partir do caráter e das necessidades dos opressores! O espírito da
lei é a margem de manobra que permite ao juiz decidir como lhe aprouver. Ao
manipular a palavra nua, o juiz a veste e adorna com os significados que melhor
respondam aos seus interesses e desejos, quase sempre estranhos ao fato
julgado. O juiz, como artista que também é, escolhe ou inventa significados
para a palavra escrita - esta é a sua arte." (BOAL, p. 72).
“Os dogmas impediam – em muitos países ainda impedem! – que as mulheres
votassem porque... são mulheres. Obrigavam e obrigam negros a sentar nas
últimas filas dos ônibus porque... são negros. (...)” (BOAL, p. 75).
“Quem tem o poder da palavra, da imagem e do som, tem a seu dispor a
invenção de dogmas religiosos, políticos, econômicos e sociais... e também
dogmas de arte e da cultura. Nestes, os seres humanos são divididos em artistas
e não artistas, como se fossem divididos em nobres e plebeus. Isto é dogma, e
dos mais abjetos.” (BOAL, p. 75).
Metamorfoses e usos
abusivos da palavra.
“As palavras são inquietas, avançando novos significados. Escravo deriva do latim eslavus, transformada em esclavus no século X e, mais tarde, em escravo, cativo. A mudança semântica se explica porque germanos e bizantinos
escravizaram grande parte dos
indivíduos eslavos na Europa Central
durante a Idade Média. A palavra eslavus
era entendida como aquele ser humano que podia ser castrado de suas vontades e
desejos, ser dominado e servir. Era necessário inventar uma palavra para que a
escravidão adquirisse cidadania e se tornasse aceitável... O homem deixa de ser
homem e torna-se apenas escravo.” (BOAL, p. 77).
“O pensamento sensível, apesar da progressiva predominância do
simbólico, nele subsiste. Esmaecido, subsiste na voz da palavra falada, na sintaxe
da escrita e nas imagens que assomam. Quando pronunciamos uma palavra – em
especial substantivos -, ela não nos vem como simples som e sentido. Jamais
sozinhas, ainda que pálidas, surgem em nosso consciente, subconsciente,
pré-consciente e inconsciente, nuvens esvoaçantes de imagens, segundo a cultura
a que pertencemos, nosso passado pessoal e o momento que vivemos.” (BOAL, p. 79).
Um povo
estranho... tão familiar.
“(...) Mesmo sem palavras para nomeá-las, as
cores existem; como é certo que pensamos tudo que nossos olhos veem – ver, ao
contrário de apenas olhar, é uma forma de pensar -, podemos imaginar que os pirahãs a elas se refiram por meios
sensíveis, não verbais: zumbidos. Aos números, talvez associem trinados ou
gestos manuais simbólicos. Vocabulário em gestação. No entanto, os meios
sensíveis têm seus limites: para pensar o futuro além do anoitecer, as palavras
são necessárias. Para pensar o passado além do há pouco tempo, as palavras são indispensáveis. Essa pobreza
vocabular talvez explique, ou seja causa, da ausência, nessa cultura, de
qualquer forma de ficção ou mitos de origem. Olhando o passado, os pirahãs não vão além de alguns
anteontens; seu futuro é sem amanhãs. Outra interessante característica desse
estranho povo é que seus indivíduos, de tempo em tempo, mudam de nome próprio
porque acreditam que o avançar da idade os transforma em outras pessoas.
Mentiriam se guardassem os mesmos nomes: já não são quem foram.” (BOAL, p. 81).
Harmonia e
colisões.
“Nenhuma das duas formas de pensar pode
proporcionar, sozinha, a mais completa percepção do mundo, da qual só seremos
capazes se formos capazes de conjugá-las. Da mesma forma que devemos aprender a
ler e escrever, devemos aprender a ver e ouvir. O abandono deste ou daquele
pensamento causa graves danos à expansão da personalidade.” (BOAL, p. 82).
Arte como
política.
“Algumas formas artísticas se limitam a provocar
sensações sem conhecimento organizado, nem pensamento organizativo, sem
história nem futuro, como se a pura sensação estanque fosse a razão da arte.
Não é! Explicações não são necessárias, mas a razão sensível é razão.” (BOAL,
p. 83).
“Oscar Wilde dizia que a arte não imita a vida,
como se diz: é a vida que imita a arte. Como Wilde tem sido associado a
frivolidades – por sua obra e vida, ou por puro preconceito -, esta afirmação é
interpretada como brincadeira, boutade.
No entanto, é profunda e verdadeira! O cinema e o teatro são capazes de
infiltrar comportamentos em suas plateias: a empatia é a responsável.” (BOAL,
p. 85).
Mentiras e
hipocrisia.
“Com a invenção da palavra, o ser
humano, criando uma outra forma de percepção do mundo, criando um outro mundo,
com esse gigantesco salto inventou a mentira em suas formas mais comuns: o
falso testemunho e a calúnia, amplamente usados como armas de poder.” (BOAL, p.
87).
“Com a mentira surgiu a
hipocrisia, que é a possibilidade de se dar uma contínua aparência de verdade
ao que sabemos ser falso. É curioso lembrar que a palavra grega hupokrisia ou
hupocritês, entre seus vários sentidos, tinha o de “desempenhar um papel em uma
peça”: a arte do ator. Significava também: ‘A resposta do oráculo’.” (BOAL, p.
87).
“Um trágico exemplo dos sentidos
humanos esmaecidos pelo surgimento da fala aconteceu no dia 26 de dezembro de
2004, quando poderosos tsunamis devastaram várias cidades da Ásia e da África,
matando mais de trezentas mil pessoas. No entanto, no Parque Nacional do Sri
Lanka, povoado por animais silvestres e selvagens, nenhum morreu, apesar da
tremenda inundação provocada pelas ondas de doze metros de altura.
Salvaram-se elefantes e chacais, pássaros e roedores, e até desajeitados
crocodilos conseguiram escapar – fugiram a tempo para regiões elevadas quando
perceberam as primeiras vibrações sísmicas e os primeiros longínquos ruídos do
fundo do oceano que se abria.” (BOAL, p. 89).
Definha, em nós, o artista.
“Com a introdução da palavra,
simbólica, as linguagens estéticas (sinaléticas) esmaecem e se tornam menos
conscientes e consistentes. Limitamos nossa percepção a caminhos cansados, e o
nosso corpo se mecaniza nas ações dos rituais cotidianos. Prestamos atenção ao
significado atribuído às palavras – não ao timbre, volume, ritmo,
características sensoriais da voz.” (BOAL, p. 90).
“(...) Quando ultrapassamos esse
limite especulativo e, como cidadãos-artistas, criamos nossa própria obra de
arte invadindo a cena e construindo alternativas à situação mostrada, no
teatro; quando, com nossas mãos, pintamos um quadro, fabricamos uma escultura,
nas artes plásticas ou nas artes da palavra, quando escrevemos poemas ou
narrativas – nestes casos estaremos inventamos o terceiro ângulo do triângulo
estético: eu vivendo minha vida social e pessoal; a realidade que me serve de
modelo; e a minha imagem da realidade possível. Esta visão metafórica
triangular nos estimula a descobrir aspectos invisíveis da realidade. Em
teatro, o espectador-cidadão se multiplica por dois: é quem é, e se torna parte
da sua própria obra de arte teatral sendo o personagem.” (BOAL, p. 91).
RESUMO COMENTADO.
Sentir é pensar, é como o
indivíduo percebe o mundo. Desta forma, o indivíduo se relaciona com as
culturas. Culturas porque somos pluriculturais. Não só o mundo, mas os países,
as cidades, os bairros, etc. Por sermos tão diversos é que pensamos de diversas
formas e por isso, diferentes. Iguais e diferentes. Assim sendo, as verdades
são as mais diversas também. Porém, é preciso acreditar na existência de uma
verdade que seja comum a todos nós: o direito e respeito a vida – que abraça em
si reflexões a cerca da liberdade de expressão. É nessa verdade única que
reside a ética diferente da moral que reside nas verdades de cada um. A ética
busca essa verdade universal que dá direitos e deveres justos a todos. Enquanto
que a moral busca impor aquilo o que acha que é certo e que é errado. Assim
como o indivíduo tem o direito de ser livre, ele também tem o dever em ser
livre. Liberdade tem a ver com responsabilidade, solidariedade. A licenciosidade
é uma falsa liberdade que extrapola os limites do respeito para consigo e para
com os outros. Por sermos pluriculturais é que uma antropofagia cultural é
defendida no sentido de nos alimentarmos dessa diversidade e nos potencializarmos
ao invés de querermos impor a vigência de uma única cultura tida como a melhor.
É nessa relação entre sujeito e objeto (seja este objeto uma caneta, uma obra
de arte, e até mesmo a própria natureza) que se dá o conceito de estética. É a
maneira sensível pela qual o observador lança um olhar também sensível sobre o
objeto percebido. A partir da definição de aura
- projeção de significados que os indivíduos lançam sobre um objeto -, Boal
acredita que a mesma pode ser uma arma tanto de dominação quanto de libertação.
Antes de chegar à aura dos objetos artísticos ou obras de arte, ele inicia seu
pensamento acerca dos objetos religiosos e seu valor político. Os significados
que estes objetos recebem por parte de quem os detêm (sacerdotes, bispos, etc.)
são usados para dominar os fiéis de forma a não lhes darem acesso, conhecimento
a esses mesmos significados. É essa falta de conhecimento que gera a
passividade. A falta do saber, do educar-se tira o direito do indivíduo de ser
sujeito de si e de sua história, restando apenas que este caminhe limitado a
indicações dos que detêm da informação. Assim também acontece com as obras
artísticas. Além de privar a população dos significados e desta produzir seus
próprios significados, os dominantes atribuem os significados que lhes convém.
Se tanto o conceito de Estética e o de aura se dá na relação entre sujeito –
objeto, o veto desse direito de poder perceber os objetos (e objeto refiro-me a
todo e qualquer fenômeno passível de pesquisa, de percepção, de compreensão)
anestesia o indivíduo e o adestra a ser um mero reprodutor de sensações. Desta
maneira, cada dominante dita suas verdades absolutas e únicas. Antes mesmo do nascimento,
o feto já é informado socialmente e culturalmente através das suas primeiras
sensações. Desde o ventre, o bebê já percebe através dos seus sentidos. Por
isso mesmo, é que estes são tão importantes ao falar-se de opressão ou
libertação. As sensações são atreladas a emoções que, por sua vez, se registram
em nossa memória sempre de forma intensa – seja prazerosa ou dolorosa. Conforme
um estímulo novo, acessamos em nossa memória aquela sensação/emoção já
registrada e, assim, partimos de parâmetros e paradigmas. Vale ressaltar que
esta afirmação não exclui o fato de o indivíduo poder manifestar-se contra
aquela ou outra memória acessada através da dúvida e/ou da sua reedição. O
pensamento sensível é anterior ao simbólico. Acredito que o segundo necessite
do primeiro. É nesse primeiro pensamento que a criança percebe que faz parte de
um mundo e de que pode interagir com ele e transformá-lo. Ao passo que nos
tornamos adultos, a palavra (escrita e oral) e a língua se tornam também
importantes até pelo fato de no pensamento ainda só sensível, as crianças terem
contatos com o idioma por parte do universo adulto da qual elas fazem parte. O
pensamento simbólico nasce do pensamento sensível pela relação do sujeito com a
palavra (objeto). A palavra já existe no sensível pensado desde bebê. A
diferença está justamente na relação. Se neste primeiro (sensível) a palavra
existe pelas sensações/emoções/memórias que causam no sujeito, ela existirá no
simbólico pelo seu conceito. Aqui, o autor fala dessa relação a partir dos
significantes e significados de uma mesma palavra. No sensível, ambos estão
juntos porque o significante e o significado referem-se à mesma coisa e, por
isso concreto. Já no simbólico, eles estão separados porque nem sempre a mesma
palavra (significante) refere-se ao mesmo significado, por isso abstrata. Exemplo:
MANGA. Se a manga faz o cachorro salivar é porque ele entende que a palavra
manga refere-se a um único significado porque o seu significante vem atrelado
ao prazer que é esse único significado (sensação+emoção+memória). Esse seria o
pensamento sensível. Agora, quando a mesma palavra MANGA pode tanto significar
fruta quanto parte de uma camisa, ela já fará parte do simbólico, pois é o
símbolo da fruta ou da camisa a que me refiro e o cachorro não saberá
distinguir somente pelo conceito de um ou de outro. O simbólico surge da
necessidade de se querer falar e não, só sentir. E o sensível faz com que o que
é dito seja sentido por quem diz e por quem escuta. Assim, ambos coexistem. Desta
forma, os significados atribuídos sejam a uma obra como a uma palavra, podem
ser utilizados enquanto armas tanto de opressão quanto de libertação. Aquele
que detém destes significados oprimi e/ou liberta-se. Para Boal a palavra nasce do grito animalesco e se torna lei e dogma
através do seu significado. Consequentemente, estamos falando de opressão. Se
uma palavra ou a estruturação de mais de uma palavra (uma frase ou um
pensamento, por exemplo) tem o significado, o sentido ou a imagem que algum indivíduo
lhes atribua, este alguém tem o poder sobre o discurso. Se uma pessoa tem de
aprender a dirigir porque isto significa que todo mundo tem de dirigir porque
assim tem de ser ou porque é preciso para encurtar a distância entre dois
pontos, ela será dogmaticamente oprimida a ter de aprender a dirigir. Isso, se
esta pessoa desconhece, por exemplo, que a mesma frase “Você tem de aprender a
dirigir” signifique que assim pensa uma parte da sociedade dominante
capitalista que incentiva o consumo inconsciente. “Você tem dirigir” também
pode significar a reprodução de um discurso antigo e dogmático por aqueles que
desconhecem outras opções de transporte como a bicicleta, por exemplo. A
palavra, o pensamento vira uma lei que pode dominar a partir do sentido que lhe
é empregado e por perpetuar por gerações através do seu caráter indiscutível
torna-se um dogma opressor. Tem de ser assim porque tem de ser assim. Ambos
pensamentos sensível e simbólico juntos nos dão uma maior percepção da
realidade. Como cada um será vivido pelo indivíduo vai depender da cultura, pois
os mesmos também são reflexos dela. A razão está também na sensibilidade, pois
sentir é pensar com os sentidos. Por esta razão que toda arte é política e nos
faz pensar. Apesar da importância da apreciação de ambos pensamentos, o
simbólico tende a ser mais aviltado pelo indivíduo. Desta forma, nossa
sensibilidade vai sendo encurtada a cada geração. O artista não foge a esta
regra a menos que ele se dê conta e resolva fazer algo.
Capítulo 2 – Do pensamento estético à concreção
artística.
A subjetividade da arte.
“Ficaríamos paralisados se
tivéssemos que ver e ter consciência de tudo que olhamos; escutar e ter
consciência de tudo que ouvimos; tocar e ter consciência de tudo que sentimos,
cheiramos e gustamos, tal o acúmulo catastrófico e torrencial das informações
recebidas. A Natureza é vertiginosa, não somos capazes de viver essa vertigem.”
(BOAL, p. 97).
“Tudo é trânsito neste mundo –
cada um de nós e cada império, Romano ou dos Mil Anos; cada nação e o
mapa-múndi – tudo muda: eu mesmo, quando me nomeiam Augusto Boal. Qual? Sou
quem fui antes de escrever esta última linha ou aquele que ainda não escreveu a
próxima? Sou um rio de Crátilo:5 em mim, correm águas que não corriam. Outras
correram e jamais voltarão rio acima – escondem-se no mar.” (BOAL, p. 100).
Palavras são meios de transporte.
“Palavras são perigosas –
cuidado! Designam conjuntos, mas ignoram unicidades. Negros e brancos, homens e
mulheres, proletariado e campesinato são conjuntos criados pelo pensamento e
pela imaginação, inspirados em realidades sensíveis, mas que não existem como
concreção física. São, mas não existem. O que existe corporeamente é este negro
e aquela branca, esta mulher e aquele homem, esta camponesa e aquele operário.”
(BOAL, p. 101).
“Conjunto é sempre algo mais que
a soma de suas unidades – é sinergia! Assemelha-se à segunda estrutura de
cordas da cítara, cordas musicais que vibram embora não sejam tocadas pelo
músico – apenas pelas ondas sonoras que as primeiras cordas produzem (...).
Podemos falar em proletariado, família, pátria etc. para designarmos
propriedades específicas desses conjuntos – cientes, porém, da sua
transitoriedade. Não podemos eternizar o conceito de palavras que eternizam
conjuntos que não são eternos. O proletariado do qual falava Marx no século XIX
não é o mesmo proletariado estadunidense do século XXI. Semelhanças existem...
e imensas diferenças.” (BOAL, p. 102).
“Para que sejamos capazes de
apreender o uno e não apenas os conjuntos aos quais pertence, alguma outra
mediação se torna necessária para evitarmos as imprecisões de darmos o mesmo
nome, boi, a cada membro da boiada, pois esse gado é feito de unicidades
bovinas e não de massa açougueira. Cada vaca tem sua personalidade: Mimosa,
Estrela, Esmeralda... – são vacas. Boiada é sinergia.” (BOAL, p. 105).
O artista e sua arte, artista-indivíduo e cidadãos-artistas.
“Ao não se deter, porém, na comum
percepção que constrói conjuntos analógicos ou complementares – nem diante das
imagens pré-fabricadas, dos sons estereotipados e palavras vazias que expressam
o Pensamento Único dominante –, o artista avança, sente, toca, vê e ouve a
potência, não só o ato; ultrapassa as aparências do real e revela percepções e
aspectos únicos da realidade encouraçada, ou formas únicas de percebê-la:
revela aquilo que as palavras confundem, as imagens escondem e os sons
ensurdecem.” (BOAL, p. 106).
Divagações sobre as curiosas semelhanças entre amor e arte.
“Amar é uma forma de arte, e o
amante sempre algo de artista tem; arte é amor no sentido em que, sem essa
atração que sente o sujeito pelo objeto que também é sujeito, ela, a arte, não
existiria. Este livro é minha arte: sem o amor que por ele sinto, ele não
existiria ou, pelo menos, não na forma que aqui o tenho fabricado.” (BOAL, p.
110).
“No amor e na arte, a única
constante é a inconstância. Ao contrário do que se diz, o amor não é um
encontro: é uma perseguição! Aquele ou aquela que está sempre mudando persegue
aquela ou aquele que nunca é igual a si mesmo (...). O amor não oferece nenhuma
garantia de estabilidade, como sabemos e temos provado. Perdoem-me o
lugar-comum, mas, da mesma forma que devemos cultivar a arte com amor, o
cultivo do amor é uma arte.” (BOAL, p. 111).
Arte como forma de conhecimento.
“Eu se transforma em nós –
extraordinário salto. Nós e os artistas, eu e nós – plateia. Juntos,
descobrimos a descoberta que fez o artista. Arte é, a um só tempo, individual e
social: ao dizermos nós, descobrimos nosso abrangente eu. Digo eu, e somos nós.
Podemos estar todos juntos diante de atores, bailarinos ou telas de cinema, ou
podemos, solitários, observar um quadro ou escultura – a pluralização se opera,
ainda que invisível.” (BOAL, p. 112).
A famosa Teoria dos Neurônios Estéticos.
“As sinapses se multiplicam e se
diversificam na medida em que são estimuladas. Quanto mais conhecemos, mais
cresce nossa capacidade de conhecer. Quanto mais me ponho a pintar, mais
invento como usar pincéis e tinta, como se fosse pintor. Quanto mais me ponho a
cantar, mais conheço a extensão da minha voz como cantor. Quanto mais fizer
bailar minhas palavras, mais aprendo a amá-las, como se fosse poeta.” (BOAL, p.
116).
“Pedindo antecipadas desculpas
aos neurocientistas, quero batizá-los de neurônios estéticos porque é essa a
função da Estética: através dos sentidos emocionados, luzir razões, promover
transformações.” (BOAL, p. 117).
“Todos esses circuitos
modificados retornarão às camadas subcorticais, de onde, por sua vez, irão
influenciar a recepção de novas mensagens com as quais guardem alguma relação:
os primeiros sons influenciarão a recepção dos novos sons; as primeiras
imagens, a de novas imagens; as velhas palavras serão confrontadas com novas
palavras; velhos conceitos com conceitos novos; primeiros valores com valores
recém-chegados. Todos esses primeiros arcaicos não são imutáveis e podem ser
modificados, substituídos ou erradicados, porque não são definitivos – nada no
ser humano é definitivo, a começar pela vida! Quanto mais arcaicos, porém, mais
resistentes serão a qualquer transformação.” (BOAL, p. 117).
Metáfora – translação e transubstanciação.
“A metáfora, no sentido
etimológico de translação e transubstanciação, transpõe algo que existe no
contexto cotidiano para um contexto diferente – como palavra deslocada do seu
texto para outro. Ou constrói, em outra substância, imagens da realidade
original, como um quadro ou uma estátua.” (BOAL, p. 119).
“Faz parte da nossa estética
criar condições para que os oprimidos possam desenvolver sua capacidade de simbolizar,
fazer parábolas e alegorias que lhes permitam ver, a distância, a realidade que
devem modificar.” (BOAL, p. 122).
Exemplo grego – só exemplo.
“Protágoras foi um desses
criativos sofistas. Contava-se dele uma história que fazia seus interlocutores
pensarem de verdade, a fundo, sem repetir frases feitas e conceitos
estabelecidos pelos aristocratas, que não permitiam o pensamento livre, isto é,
não permitiam pensar: ‘O jovem Euathlus
queria ser seu aluno e foi procurá-lo. Protágoras, era grande orador, portanto,
advogado. Como não tinha dinheiro, o aluno propôs pagar suas aulas no fim do
curso, com o salário que receberia pela sua primeira vitória em seu primeiro
julgamento. Protágoras aceitou. No meio do ano, o aluno desistiu e foi-se
embora. Protágoras reclamou em juízo o pagamento dos serviços que já lhe havia
prestado como professor, e o aluno foi trazido aos tribunais para se defender.
O aluno recusou-se a pagar alegando que não havia terminado o curso nem ganho
qualquer causa e que, portanto, a obrigação de pagamento não existia. O juiz lhe
deu ganho de causa. Protágoras retornou ao combate e afirmou que, tendo ele,
Protágoras, perdido a causa, quem a ganhara havia sido seu exaluno, que, em tão
pouco tempo, tanto aprendera. Portando, como ganhador de sua primeira causa, o
aluno deveria pagar. O juiz pensou, pesou... olhou os dois lados da questão...
paga ou não paga? Examinou bem... e... o que pensaria você, leitor? Diga lá –
eu não vou ajudar em nada: pense com sua cabeça, como aconselhava Protágoras!’”
(BOAL, p. 124-125).
Monarquias políticas e artísticas.
“Todas as coisas precisam ser
nomeadas para que seja reconhecida a sua existência, mesmo invisível. Quem não
tem nome, não existe; quem deixa de ser o que era, precisa de rebatismo.”
(BOAL, p. 130).
“Muitos sistemas de intenções
democráticas, nesta pré-história da humanidade que estamos vivendo, cedo se
transformam em monarquias autoritárias, até mesmo em seus opostos, como
aconteceu com o Cristo, que não escapou dessa triste alomorfia: sua doutrina de
igualdade, fraternidade e carinhosa solidariedade logo foi queimada nas fumegantes
fogueiras da Inquisição, junto com Brunos e Joanas, bruxos e feiticeiras... Sua
democrática multiplicação de pães e peixes transformou-se em dízimos a serem
pagos pontualmente – comércio cuja mercadoria é a ilusão, a esperança e a fé.”
(BOAL, p. 135).
“Nos meios de comunicação –
fantástica arma de poder e convencimento! –, imperam absolutas as monarquias da
palavra, do som e da imagem, transformadas em latifúndios da informação.
Imagem, palavra e som não circulam livres na sociedade – são canalizados pelas
estações de rádio e TV, pelos livros, revistas e jornais, escolas e
universidades, e pela propaganda na beira da estrada. Tudo isso tem dono!
Vivemos no mundo virtual desses três impérios. Palavra, som e imagem são livres
enquanto possível criação acessível a todos os seres humanos, mas os meios de
comunicação que os fazem circular são privativos do poder econômico que os
fabrica, padroniza, difunde, controla e usa.” (BOAL, p. 136).
“Convém não esquecer que ser
humano é ser artista e ser artista é ser humano. Arte é vocação humana, é o que
de mais humano existe no ser. Para alguns de nós, tornou-se profissão, mas
continua sendo uma democrática vocação. Nenhum de nós tem que ser melhor que
ninguém; cada um de nós pode sempre ser melhor que si mesmo.” (BOAL, p. 138).
A linguagem estética do poder.
“Os animais privatizam o espaço e
o espaço privatizado é excludente: esta é a minha casa, o meu quintal, o meu
latifúndio; não é a tua casa, o vosso quintal ou a nossa terra. Não nosso ou
vosso: é meu! Inicia-se a luta, feroz ou ardilosa, pelo espaço, que se tornou
extensão do corpo do dono, seja leão, tigre ou, no campo, grileiros.” (BOAL, p.
139).
“No mesmo mês de janeiro, a ONU
revelou que existem 950 milhões de famintos na terra... mas as nações ricas não
moveram meia palha, nem gastaram um só centavo para salvá-los da tortura da
fome. Dez por cento do que gastaram com bancos e banqueiros teriam bastado para
alimentar esses milhões de famintos durante dez anos. A crise que os preocupa é
sempre a crise dos ricos, não a dos pobres; crise do sistema financeiro, não da
barriga vazia. Será que a mesma Estética será válida para os dois lados?”
(BOAL, p. 140,141).
Sociedades espetaculares e sociedades do espetáculo.
“As sociedades são espetaculares
no sentido estético da palavra, isto é, como organização sensorial de um ato,
uma relação humana, um evento. O comer solitário em um botequim da esquina já
contém elementos culturais do espetáculo que é um jantar em família; um só
indivíduo ao telefone prenuncia, em gestos e voz, uma teatral reunião de
negócios. As sociedades jamais deixam de ser espetaculares porque todo
espetáculo é uma confrontação de poderes, e todas as relações humanas são
confrontações de poder.” (BOAL, p. 141).
“Os espetáculos da sociedade do
espetáculo são revelados e reconhecidos como tais dado o seu caráter de
exibição e a clara divisão entre espectadores e espetáculos, uns lá, outros cá,
enquanto os espetáculos do cotidiano das Sociedades Espetaculares são, ou se
tornam, inconscientes. Podem e devem ser revelados pela arte – todas as artes!”
(BOAL, p. 142).
“O espetáculo expõe aos nossos sentidos não
apenas o seu titular principal, mas toda a hierarquia, desde o mais poderoso
senhor até o último coadjuvante. Todos desempenham papéis, ora distantes do
epicentro, ora como papagaios-de-pirata, no ombro de alguém importante, espinha
reta ou curvada. Quanto mais próximo do protagonista, maior seu poder. Tocá-lo:
sonho supremo.” (BOAL, p. 144).
“Terminada a festa – sociedade do
espetáculo –, mesmo assim os rituais do cotidiano – sociedade espetacular –
continuam: o imperador caminha para sua cama como se fosse Imperador; os
serviçais, como obedientes serviçais, caminham para os seus porões; o tom de
voz de um e outros mantém características de opressor-oprimidos, mantém as
estruturas do poder. A festa é um espetáculo da sociedade... O pós-festa é
espetacular, embora inconsciente.” (BOAL, p. 145).
“Nenhuma sociedade sobreviveria
sem ser espetacular, e sem espetáculos – ambos têm função civilizatória. Sua
vetustez, porém, engessa a criatividade e proíbe a invenção.” (BOAL, p. 147).
A invasão dos cérebros
“Invasão dos Cérebros: a mesma
tática que se usa para invadir um país – primeiro bombardeios, antes que entre
em ação a infantaria de ocupação: primeiro TV e cine... depois o mercado vem
atrás.” (BOAL, p. 149).
“Mesmo sendo um sistema
coercitivo que tinha por meta política acomodar suas plateias ao conformismo
social, não estimular seu inconformismo, seu desejo de transformar o mundo – ao
contrário do Teatro do Oprimido! –, a tragédia estimulava o pensamento e podia,
como em Eurípides, questionar a sociedade e seus valores. Era o balé das
ideias, não o das balas perdidas!” (BOAL, p. 150).
“Com este lixo ético despejado em
seus perplexos neurônios, os vulneráveis espectadores vão, mais tarde, receber
as novas informações. Não podemos nos espantar diante de crimes de Columbine e
Virgínia Tech, que foram prenunciados e promovidos por esse tipo de cinema, nem
podemos esquecer que as torres gêmeas de Nova York foram destruídas em um filme
de ficção antes de serem filmadas em chamas na tragédia verdadeira.” (BOAL, p.
152).
“Essa apropriação indébita de
significados e significantes, proposital esvaziamento da palavra – que, podendo
significar qualquer coisa, não significa nada – tem por objetivo desorganizar a
linguagem e impedir a formulação de pensamentos coerentes.” (BOAL, p. 153).
“Já não se sabe o que se diz
quando se fala! Já não se sabe o que se escuta quando se ouve. A língua, falada
e escrita, torna-se obstáculo à comunicação, o oposto daquilo para o que foi
criada.” (BOAL, p. 153).
Coroas refratárias e agressivas, mas não indestrutíveis.
“O fanatismo esportivo e
religioso, a adoração idolátrica de pessoa ou instituição, o sectarismo político
ou quaisquer outros sectarismos – mesmo quando existam razões sociais e
econômicas para essa rendição à miopia – são exemplos concretos dessas coroas
formadas pela repetição insistente das mesmas informações com o mesmo conteúdo,
e pela aceitação de valores não questionados.” (BOAL, p. 156).
“A Estética do Oprimido,
democrática e subjuntiva, visa, através da arte, permitir ao cidadão questionar
dogmas e certezas, hábitos e costumes que suportamos em nossas vidas. Visa
analisar cada ação e cada fato que acontece dentro de circunstâncias concretas.
Visa destruir coroas de circuitos neuronais refratárias e agressivas... mas não
indestrutíveis.” (BOAL, p. 158).
A objetividade da arte.
“É neste nível ético que se devem
mover o Teatro e a Estética do Oprimido: não bastam boas ideias, é necessário
que sejam justificadas; não basta trabalhar com ideias que já existem, é
necessário inventar, porque todas as situações, mesmo repetidas, são sempre
novas.” (BOAL, p. 160).
Do processo estético ao produto artístico.
“Quando, porém, àqueles que não
pertencem à monarquia artística, quando às pessoas comuns se oferece a
possibilidade de realizar um processo estético do qual foram alienadas, este
processo expande suas possibilidades expressivas atrofiadas, aprofunda sua
percepção do mundo, dinamiza seu desejo de transformá-lo.” (BOAL, p. 162).
“Ao fabricar sua obra, o novo
artista, mesmo que não chegue a produzir obras para museus, sente o prazer de
ser reconhecido como insubstituível naquilo que faz e que só ele ou ela sabem
fazer do jeito que fazem.” (BOAL, p. 162).
O trânsito social do singular ao plural.
“Não se trata apenas de tornar
agradável o espetáculo, torná-lo estético, mas de descobrir a verdade escondida
atrás dos nossos hábitos mecanizados de pensamento e comportamento repetitivo
do dia-a-dia.” (BOAL, p. 164).
O método subjuntivo.
“O teatro conjuga a realidade no tempo presente do modo indicativo
– ‘Eu faço!’ – ou no gerúndio – ‘Estou fazendo’. A TV e a publicidade, no modo
imperativo – ‘Faça!’ No Teatro do Oprimido, a realidade é conjugada no modo
subjuntivo, em dois tempos: no pretérito imperfeito – ‘...e se eu fizesse?’ –
ou no futuro – ‘...e se eu fizer?’” (BOAL, p. 165).
“Mesmo que os participantes dos
nossos projetos em escolas, saúde mental, camponeses, pontos de cultura façam
qualquer coisa admirável, ainda assim devemos pedir alternativas: e se fosse
diferente, como seria? No final de cada sessão, sim, devemos decidir o que
fazer, como fazê-lo e quando.” (BOAL, p. 165).
Revolução cultural não dogmática.
“A Estética do Oprimido é uma
forma essencial de combater a Invasão dos Cérebros porque coloca o oprimido
como protagonista do processo estético, não simples fruidor de arte.” (BOAL. p.
166).
“Não leva a cultura ao povo, mas
oferece meios estéticos necessários para o desenvolvimento da sua própria
cultura, com seus próprios meios e metas. Não apenas educa nos elementos
essenciais do como se pode fazer, mas, pedagogicamente, estimula os
participantes a buscarem seus caminhos.” (BOAL, p. 166).
“Uma Estética democrática, ao
tornar seus participantes capazes de produzir suas obras, vai ajudá-los a
expelir os produtos pseudoculturais que são obrigados a tragar no dia-a-dia dos
meios de comunicação, propriedade dos opressores. Democracia estética contra a
monarquia da arte.” (BOAL, p. 167).
“Até mesmo os Jogos Sinestésicos
já estão no nosso Arsenal e são os que mais estimulam a criatividade artística
porque, ao traduzirem uma sensação em outra, uma ideia em sensação ou uma
sensação em ideia, ao traduzirem a memória em emoção e esta naquela, estimulam
a totalidade dos neurônios estéticos envolvidos no tema.” (BOAL, p. 169).
“Nenhuma estrutura de dança,
música ou teatro, no entanto, é inocente ou vazia: todas contêm a visão do
mundo de quem a produz. Contêm sua ideologia, que, através da forma artística,
é incorporada por quem as pratica... a menos que disso esteja consciente.”
(BOAL, p. 169).
RESUMO COMENTADO.
O amor e a arte são de natureza
estética, pois não precisam de explicações. É preciso sentir antes de qualquer
coisa. Num mundo tão cheio de informações, imagens, palavras e sons, não somos
capazes de perceber tudo a nossa volta. Não somos oniscientes. Então,
simbolicamente criamos conceitos que agrupam as coisas ou por analogia ou por
complementaridade. E assim, são formados os conjuntos. Os indivíduos ou objetos
de um conjunto podem ou não ser semelhantes e se sendo, não quer dizer que são
idênticos. Existem as diferenças, a diversidade, a pluralidade. Por isso, por
mais importante que este agrupamento didático seja interessante e funcional não
podemos generalizar pejorativamente e esquecer que vida é movimento e que as
coisas mudam, as pessoas mudam. Inclusive, os conceitos quiçá os preconceitos.
Será também através das palavras que nos comunicaremos e apesar de em algumas
vezes serem as mesmas palavras, nem sempre serão os mesmos significados que
dependem desses indivíduos mutantes e seus conjuntos culturais. A arte também é
uma forma de comunicação que não necessariamente verbal onde o artista se
comunica com sua plateia. Universos pessoais contam histórias culturais e
comuns a todos no que diz respeito ao que temos de interseção: a vida em suas
dores, prazeres, inquietações e mudanças. E o conjunto passa a ser coletivo.
Agrupados porque juntos somos mais fortes no que se tange o bem maior. Por
isso, é preciso muito cuidado com a arte que contemplamos, pois ela pode muito
bem nos oprimir impondo-nos suas verdades ou nos desequilibrar com suas dúvidas
e nos fazer cair em meio a um precipício de questionamentos. Há quem prefira
andar sobre o chão firme das verdades absolutas. Eu já prefiro me atirar em
queda livre. Ao infinito que escapa das formas, dos limites, fronteiras e
conceitos. Nesse livro e em toda sua pesquisa artística, Boal propõe uma
reflexão acerca da transformação e a sua concreção. As metáforas são uma ótima
forma de mudança, onde aquele que a produz está criando um novo olhar sobre a
realidade. A quebra das tradições, dos dogmas também é uma forma de
transformação. Os rituais enquanto espetáculos que acontecem nas sociedades
devido a seu caráter de repetição precisam de mudanças a fim de que o novo
ganhe lugar e, assim, evoluamos. Só permanece no mesmo lugar quem está feliz
ali ou já não acredita mais na mudança, perdeu a fé e a esperança. A classe
dominante – sejam aristocratas, burgueses, intelectuais, políticos, empresas,
etc. – teme a transformação justamente porque lhes é cômodo o lugar do poder,
de poder. Os rituais assim como os dogmas impõem suas regras, onde alguns serão
vetados de agirem livremente e outros obrigados a agirem. O autor aqui não questiona
esses ritos, pois ele acredita que os mesmos são civilizatórios no sentido de
expressar e conceituar determinadas civilizações. Eles nomeiam as culturas. O
que se é questionado aqui é a não transformação dos mesmos. A tradição mantida
como eterna custe o que custar. Por que não posso questionar a nossa cultura?
As culturas? Por que não posso romper com paradigmas, verdades absolutas,
inclusive as minhas próprias? Para mudar é preciso pensar. Por que mudamos? Por
quem mudamos? Para quem? O que mudo? O que me muda? E à medida que mudamos,
conhecemos e nos desenvolvemos para além de nós mesmos. Transcendemos. E assim,
aprendemos. Mas aqueles que detêm o poder da informação, através da palavra, da
imagem e do som, estarão dispostos a informar as suas verdades, os seus
significados e sentidos acerca da vida. Desta forma, reproduziremos seus
pensamentos. Aqui, o autor fala da importância da Televisão e do cinema no
momento de impor o pensamento único e inquestionável apoiados na cultura
absoluta do consumismo. Regras de comportamento assim como desejos, vontades,
sonhos são depositados nos telespectadores diariamente de forma que deixam de
serem indivíduos pensantes para compor uma massa heterogênea não no sentido coletivo/solidário,
mas enquanto grupos reprodutores consumistas. A cultura que lhes deveria ser
pelo viés da produção e por meios estéticos pessoais, passa a ser apenas um
produto de fruição. A relação existente entre sociedade e cidadão não se dá de
forma que este último possa, deva e/ou tenha o direito de intervir. O que era
para ser uma relação em via de mão dupla apenas acontece em uma única mão:
sociedade > indivíduo. As coisas devem ser aceitas sem questionamentos
enquanto fatalidades imutáveis.
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