quinta-feira, 18 de junho de 2015

2. Fichamento do livro "A Estética do Oprimido", de Augusto Boal. (EM CONSTRUÇÃO)

Introdução.

“O pensamento sensível, que produz arte e cultura, é essencial para a libertação dos oprimidos, amplia e aprofunda sua capacidade de conhecer. Só com cidadãos que, por todos os meios simbólicos (palavras) e sensíveis (som e imagem), se tornam conscientes da realidade em que vivem e das formas possíveis de transformá-la, só assim surgirá, um dia, uma real democracia.” (BOAL. p 16).

RESUMO COMENTADO.

Boal fala sobre o analfabetismo da palavra (escrita) e sobre o analfabetismo estético que nos impede de pensar, de criar, de produzir conhecimento artístico. As sociedades capitalistas são adestradas pelo pensamento único e dominante que busca determinar comportamentos, ideias, sonhos, desejos, etc. Este pensamento se define como único não por inevitavelmente o ser assim, mas por obrigatoriedade imposta por quem o domina. Desta forma, o autoritarismo estético marginaliza toda e qualquer outra forma de se pensar que não a deles. Esta forma de opressão se dá através dos meios de comunicação, utilizando das imagens, sons e palavras. Mesmo que se saiba ler e escrever, não se estará livre deste tipo de analfabetismo. É preciso conscientizar-se a respeito da realidade para transformá-la.

“Arte é o objeto, material ou imaterial. Estética é a forma de produzi-lo e percebê-lo. Arte está na coisa; Estética, no sujeito e em seu olhar.” (BOAL. p 22).

Capítulo 1 - Os dois pensamentos, simbólico e sensível – um novo conceito de aura e arte, uma Nova Estética.

O pensamento sensível e o pensamento simbólico na criação artística.

“Estética é uma relação sujeito-objeto, concordo: o objeto de desejo depende do sujeito desejante para que possa ser desejado – em si, não o é. (...) também assim a apreciação do Beijo de Judas, de Giotto, depende da percepção de quem o mira – será beijo amigo ou trágica traição: a capacidade perceptiva é condicionada pela religiosidade ou não do observador, e pelo seu conhecimento histórico.” (BOAL. p 26).

“(...) mas afirmo que o ato de pensar com palavras tem início nas sensações e, sem elas, não existiria, embora delas se desprenda e se automatize até à sua mais total abstração.” (BOAL. p 27).

“Pensar é organizar o conhecimento e transformá-lo em ação, que pode ser fala ou ato, sendo que fala é ato. Pensamento é ação que transforma o pensador, o interlocutor e a relação entre os dois. Que podem ser a mesma pessoa.” (BOAL. p 29).

Belo, Bonito e Feio.

“’O feio é belo!’ – não há nisto nenhuma contradição, pois bela é a verdade escondida que a arte revela! O Belo é o reluzir da verdade através dos meios sensoriais – dizem alguns filósofos, e eu concordo; porém... qual verdade?” (BOAL. p 32).

As verdades de cada cultura.

“(...) Quando a cultura de uma época ou país é universalmente aceita como sendo a melhor, única e mais perfeita, é porque a opressão ali é universalmente exercida, sem contestação.” (BOAL. p 36).

O sublime e a ética.

“Assim como a cosmetizada palavra Estética, a Ética tem sido amesquinhada quando entendida como sinônimo de bom comportamento. Ética é o caminho por onde se pretende chegar ao sonho de humanizar a Humanidade. A ética repugna a persistência do instinto predatório em sociedades humanas, cujos resíduos selvagens ainda existem em nós. Contra o aspecto predatório animal do ser humano, a ética busca criar relações solidárias.” (BOAL. p 39).

Um novo conceito de aura e arte, uma Nova Estética.

“(...) através dos tempos, houve um deslocamento nas formas de apreciação da obra de arte e no seu uso. Esse deslocamento vai do início da própria arte, quando desempenhava uma função ritual, até os tempos modernos, quando, graças à multiplicação mecânica, pode-se expor a mesma obra a um público diverso e heterogêneo, em muitos lugares e ao mesmo tempo.” (BOAL, p. 41).

“Em que momento surge a aura? Sabemos que qualquer objeto, qualquer que seja sua finalidade, deve ser construído antes de ser usado. No caso de objetos artísticos – que são metáforas substantivas, isto é, são matéria -, a sua construção física é anterior à sua finalidade e aos significados que possam vir a ser, neles, projetados. A aura se desenvolve depois da criação do objeto, não antes, quando só existia, imaterial, na mente do artista. A construção do objeto de arte precede sua utilização, religiosa ou secular.” (BOAL, p. 42).

“Também nos rituais da igreja católica os sacerdotes escondiam o significado de suas missas em latim. A democratização da fé operada pelo Concílio Vaticano II, ao permitir que as missas fossem celebradas nas línguas locais dos fiéis, deu volta atrás com o recente papa Bento XVI que, se não obrigou, ao menos permitiu que outra vez fosse usado o latim diante dos fiéis, intimidados por essa língua, hoje solene. Esse ato obscurantista teve a intenção de fortalecer a autoridade eclesiástica aumentando a ignorância dos fiéis – o Mistério funciona como fonte de poder – aquele que o possui, possui o poder da Revelação!”. (BOAL, p. 44).

1.1. O corpo humano, social desde antes de nascer.

Um corpo vem ao mundo.

“Não possui nenhum conhecimento a priori, no sentido Kantiano, que ultrapasse os limites do que lhe é orgânico e, nele, singular. Não é página branca, pois traz consigo seus cinco sentidos, que mesmo antes do nascimento já lhe provocavam prazeres e dores – emoções. Traz seu código genético, físicas necessidades vitais e, mais tarde, desejos e subjetividades.” (BOAL, p. 50).

“Seus sentidos já existiam em desenvolvimento dentro do ventre materno e já guardavam memórias. Mesmo antes de estar formado, o cérebro é in-formado e as informações sensoriais recebidas passam a fazer parte das suas estruturas sensitivas e, mais tarde, cognitivas. A informação torna-se parte do seu sistema nervoso.” (BOAL, p. 51).

“As informações vindas de fora e do corpo em fase de construção fazem com que os neurônios sejam formados socialmente (neurônios+informações sensoriais) desde antes do nascimento do infante. Neurônios que, ao serem produzidos, eram puros, já não o serão ao se integrarem começando a trabalhar em equipe, jamais sozinhos!” (BOAL, p. 53).

“(...) Quando algo grave e emocionante acontece em algum estágio das nossas vidas, situações de risco e perigo ou de intenso prazer, essas estruturas emocionais perduram vivas em nossa memória oculta. Muitos desses eventos acontecem com violência no início da puberdade. Quando, décadas mais tarde, uma nova situação a elas se assemelha, regredimos àquela idade-refúgio e tendemos a agir como se ainda tivéssemos aquela idade. Voltamos a ser crianças.” (BOAL, p. 56).

Sentidos são seletivos.

“Seus primeiros contatos com o mundo exterior são de natureza sensorial. Alguns permanecem nesse nível, como a dor de estômago, o frio e o quente, a fome. Quando, porém, são estruturados pelo pensamento, tornam-se Estéticos. A Estética nasce com o bebê – não há o que temer.” (BOAL, p. 58).

Cérebro e conhecimento.

“Sensações não nos vem isoladas nem puras: recebem e produzem emoções específicas em momentos precisos. Se o bebê mama, o estômago saciado e o sabor do leite se associam ao prazer de tocar o corpo da mãe, sentir seu cheiro, ouvir sua voz. Se ouve um barulhento caminhão, seu corpo estremece e perde harmonia, física e psíquica. Cada sensação está envolta em emoções e memórias.” (BOAL, p. 60).

“Quanto mais se desenvolvem seus músculos e se organizam seus sentidos, mais ele compreende que pode não apenas conhecer e se associar ao mundo, mas também transformá-lo. Se levarmos uma criança à praia, com areia ela fará esculturas e se descobrirá escultora. Se lhe dermos papel branco e lápis de cor, ela se descobrirá pintora. Brincando com peças de madeira, a criança organiza esculturas como, mais tarde, com palavras, organizará ideias e falas.” (BOAL, p. 61).

“Esta forma de pensar sem palavras e de se relacionar com o mundo é uma forma estética de conhecê-lo. As linguagens estéticas – música, pintura, dança etc. – são cognitivas, isto é, em si mesmas, são conhecimento. As linguagens simbólicas – línguas: português, espanhol, inglês, francês, esperanto, e as línguas regionais de surdos-mudos, gestos convencionados etc. – são informativas: transportam conhecimento. A maneira de fazê-lo, no entanto, é cognitiva.” (BOAL, p. 62).

1.2. Palavra, a maior invenção humana.

Gênese da palavra.

Do pensamento sensível nasce o pensamento simbólico.

“Significante (aquela mulher) e significado (mãe) estão colados; só quando se descolam surge a linguagem conceitual, simbólica. Só quando se triangula esta relação, aí começa o parto do conceito. Quando o bebê percebe outra pessoa chamando outra mulher de mãe, quando vê filhos e mães, passa a grupar essas unicidades em um conjunto. Surge a linguagem simbólica, formada por conceitos descolados de realidades sensíveis.” (BOAL, p. 65).

“Em certas regiões da África, orangotangos conseguem criar uma linguagem que inclui sons de convite ou negação, chamamentos, etc. Um grito previne os filhotes de que não devem se pendurar naquela árvore de galho quebrado – é perigosa. Mas esses primatas não compreendem o conceito de perigo. Grito de advertência é relação concreta com a árvore presente, mas não revela o perigo de todas as árvores de galhos quebrados – só daquela.” (BOAL, p. 66).

“As necessidades e os desejos do bebê mais avançado no tempo faz com que ele imite ou invente sons que se transformarão em palavras. Com o surgimento do simbólico, as duas formas de pensar passam a coexistir. O pensamento sensível busca a amplitude do simbólico e quer falar, não apenas sentir. O pensamento simbólico busca a concreção do sensível, quer sentir e fazer sentir, não apenas enunciar – a voz da palavra, sensível, dá precisões concretas ao seu significado simbólico.” (BOAL, p. 67).

“Pelos estímulos repetidos, o cérebro do infante começa a formar uma gramática residente em redes neuronais. Esta é a gramática seminal, constituída predominantemente por sujeito, verbo e objeto direto: eu quero aquilo. Gramática semelhante em todas as línguas, porque semelhantes são as necessidades humanas básicas: físicas, fisiológicas e sociais.” (BOAL, p. 68).

“Palavras são símbolos. Para que um símbolo exista, é necessária a concordância dos interlocutores. Como quase tudo na vida social, também as palavras se tornam objeto de encarniçadas lutas. A etimologia mostra a correlação de forças da sociedade no momento em que fabricou uma palavra a fim de revelar – ou esconder – a verdade. A semântica torna-se um campo de batalha em que todas as forças em conflito procuram a cada palavra, atribuir-lhe o sentido que mais lhe convenha. A luta semântica é luta pelo Poder.” (BOAL, p. 70).

Do grito animal à palavra, da palavra à lei, e da lei ao dogma.


“Toda palavra é grito! Grito primata e primário que permanece vivo no bojo de cada palavra que pronunciamos, cada poema, frase de amor, cada artigo de cada lei.” (BOAL, p. 71).

"A lei, que resulta de uma estrutura beligerante de forças políticas, morais, sociais e econômicas em cada sociedade e em cada momento da sua fabricação, é sempre apresentada não como expressão da vontade dos vencedores, como de fato é, mas como inspiração do genérico povo (...)"(BOAL, p. 71).

"Para que a lei permitisse a existência de uma justiça ética e não apenas condenatória dos adversários e absolutória dos aliados, deveria pesar fatos e significados, hierarquizados pelo bem maior. Não é que acontece. Victor Hugo, irônico, comentou: 'A lei é igual para todos: proíbe tanto ao pobre como ao rico roubar um pão para matar a fome!'" (BOAL, p. 72).

"A lei tem corpo e alma. O corpo da lei existe em pedra ou papel - ele se aplica aos oprimidos. A alma se inventa a partir do caráter e das necessidades dos opressores! O espírito da lei é a margem de manobra que permite ao juiz decidir como lhe aprouver. Ao manipular a palavra nua, o juiz a veste e adorna com os significados que melhor respondam aos seus interesses e desejos, quase sempre estranhos ao fato julgado. O juiz, como artista que também é, escolhe ou inventa significados para a palavra escrita - esta é a sua arte." (BOAL, p. 72).

“Seguir à risca, dogmaticamente, a melhor cartilha ou o mais judicioso conselho pode-se revelar um desastre. Conselhos e cartilhas podem ser símbolos de correto comportamento, mas catastróficos se aplicados a situações concretas, diferentes daquelas que os motivaram. Uma análise estrutural não pode ignorar conjunturas. Grandes erros de opções políticas já foram cometidos adotando-se como dogmas certas análises corretas de realidades feitas no passado em situações sociais revolutas.” (BOAL, p. 74).

“Os dogmas impediam – em muitos países ainda impedem! – que as mulheres votassem porque... são mulheres. Obrigavam e obrigam negros a sentar nas últimas filas dos ônibus porque... são negros. (...)” (BOAL, p. 75).

“Quem tem o poder da palavra, da imagem e do som, tem a seu dispor a invenção de dogmas religiosos, políticos, econômicos e sociais... e também dogmas de arte e da cultura. Nestes, os seres humanos são divididos em artistas e não artistas, como se fossem divididos em nobres e plebeus. Isto é dogma, e dos mais abjetos.” (BOAL, p. 75).

Metamorfoses e usos abusivos da palavra.

“As palavras são inquietas, avançando novos significados. Escravo deriva do latim eslavus, transformada em esclavus no século X e, mais tarde, em escravo, cativo. A mudança semântica se explica porque germanos e bizantinos escravizaram grande parte dos indivíduos eslavos na Europa Central durante a Idade Média. A palavra eslavus era entendida como aquele ser humano que podia ser castrado de suas vontades e desejos, ser dominado e servir. Era necessário inventar uma palavra para que a escravidão adquirisse cidadania e se tornasse aceitável... O homem deixa de ser homem e torna-se apenas escravo.” (BOAL, p. 77).

“O pensamento sensível, apesar da progressiva predominância do simbólico, nele subsiste. Esmaecido, subsiste na voz da palavra falada, na sintaxe da escrita e nas imagens que assomam. Quando pronunciamos uma palavra – em especial substantivos -, ela não nos vem como simples som e sentido. Jamais sozinhas, ainda que pálidas, surgem em nosso consciente, subconsciente, pré-consciente e inconsciente, nuvens esvoaçantes de imagens, segundo a cultura a que pertencemos, nosso passado pessoal e o momento que vivemos.” (BOAL, p. 79).

Um povo estranho... tão familiar.

“(...) Mesmo sem palavras para nomeá-las, as cores existem; como é certo que pensamos tudo que nossos olhos veem – ver, ao contrário de apenas olhar, é uma forma de pensar -, podemos imaginar que os pirahãs a elas se refiram por meios sensíveis, não verbais: zumbidos. Aos números, talvez associem trinados ou gestos manuais simbólicos. Vocabulário em gestação. No entanto, os meios sensíveis têm seus limites: para pensar o futuro além do anoitecer, as palavras são necessárias. Para pensar o passado além do há pouco tempo, as palavras são indispensáveis. Essa pobreza vocabular talvez explique, ou seja causa, da ausência, nessa cultura, de qualquer forma de ficção ou mitos de origem. Olhando o passado, os pirahãs não vão além de alguns anteontens; seu futuro é sem amanhãs. Outra interessante característica desse estranho povo é que seus indivíduos, de tempo em tempo, mudam de nome próprio porque acreditam que o avançar da idade os transforma em outras pessoas. Mentiriam se guardassem os mesmos nomes: já não são quem foram.” (BOAL, p. 81).

Harmonia e colisões.

“Nenhuma das duas formas de pensar pode proporcionar, sozinha, a mais completa percepção do mundo, da qual só seremos capazes se formos capazes de conjugá-las. Da mesma forma que devemos aprender a ler e escrever, devemos aprender a ver e ouvir. O abandono deste ou daquele pensamento causa graves danos à expansão da personalidade.” (BOAL, p. 82).

Arte como política.

“Algumas formas artísticas se limitam a provocar sensações sem conhecimento organizado, nem pensamento organizativo, sem história nem futuro, como se a pura sensação estanque fosse a razão da arte. Não é! Explicações não são necessárias, mas a razão sensível é razão.” (BOAL, p. 83).

“Oscar Wilde dizia que a arte não imita a vida, como se diz: é a vida que imita a arte. Como Wilde tem sido associado a frivolidades – por sua obra e vida, ou por puro preconceito -, esta afirmação é interpretada como brincadeira, boutade. No entanto, é profunda e verdadeira! O cinema e o teatro são capazes de infiltrar comportamentos em suas plateias: a empatia é a responsável.” (BOAL, p. 85).

Mentiras e hipocrisia.

“Com a invenção da palavra, o ser humano, criando uma outra forma de percepção do mundo, criando um outro mundo, com esse gigantesco salto inventou a mentira em suas formas mais comuns: o falso testemunho e a calúnia, amplamente usados como armas de poder.” (BOAL, p. 87).

“Com a mentira surgiu a hipocrisia, que é a possibilidade de se dar uma contínua aparência de verdade ao que sabemos ser falso. É curioso lembrar que a palavra grega hupokrisia ou hupocritês, entre seus vários sentidos, tinha o de “desempenhar um papel em uma peça”: a arte do ator. Significava também: ‘A resposta do oráculo’.” (BOAL, p. 87).

“Um trágico exemplo dos sentidos humanos esmaecidos pelo surgimento da fala aconteceu no dia 26 de dezembro de 2004, quando poderosos tsunamis devastaram várias cidades da Ásia e da África, matando mais de trezentas mil pessoas. No entanto, no Parque Nacional do Sri Lanka, povoado por animais silvestres e selvagens, nenhum morreu, apesar da tremenda inundação provocada pelas ondas de doze metros de altura. Salvaram-se elefantes e chacais, pássaros e roedores, e até desajeitados crocodilos conseguiram escapar – fugiram a tempo para regiões elevadas quando perceberam as primeiras vibrações sísmicas e os primeiros longínquos ruídos do fundo do oceano que se abria.” (BOAL, p. 89).

Definha, em nós, o artista.

“Com a introdução da palavra, simbólica, as linguagens estéticas (sinaléticas) esmaecem e se tornam menos conscientes e consistentes. Limitamos nossa percepção a caminhos cansados, e o nosso corpo se mecaniza nas ações dos rituais cotidianos. Prestamos atenção ao significado atribuído às palavras – não ao timbre, volume, ritmo, características sensoriais da voz.” (BOAL, p. 90).

“(...) Quando ultrapassamos esse limite especulativo e, como cidadãos-artistas, criamos nossa própria obra de arte invadindo a cena e construindo alternativas à situação mostrada, no teatro; quando, com nossas mãos, pintamos um quadro, fabricamos uma escultura, nas artes plásticas ou nas artes da palavra, quando escrevemos poemas ou narrativas – nestes casos estaremos inventamos o terceiro ângulo do triângulo estético: eu vivendo minha vida social e pessoal; a realidade que me serve de modelo; e a minha imagem da realidade possível. Esta visão metafórica triangular nos estimula a descobrir aspectos invisíveis da realidade. Em teatro, o espectador-cidadão se multiplica por dois: é quem é, e se torna parte da sua própria obra de arte teatral sendo o personagem.” (BOAL, p. 91).

RESUMO COMENTADO.

Sentir é pensar, é como o indivíduo percebe o mundo. Desta forma, o indivíduo se relaciona com as culturas. Culturas porque somos pluriculturais. Não só o mundo, mas os países, as cidades, os bairros, etc. Por sermos tão diversos é que pensamos de diversas formas e por isso, diferentes. Iguais e diferentes. Assim sendo, as verdades são as mais diversas também. Porém, é preciso acreditar na existência de uma verdade que seja comum a todos nós: o direito e respeito a vida – que abraça em si reflexões a cerca da liberdade de expressão. É nessa verdade única que reside a ética diferente da moral que reside nas verdades de cada um. A ética busca essa verdade universal que dá direitos e deveres justos a todos. Enquanto que a moral busca impor aquilo o que acha que é certo e que é errado. Assim como o indivíduo tem o direito de ser livre, ele também tem o dever em ser livre. Liberdade tem a ver com responsabilidade, solidariedade. A licenciosidade é uma falsa liberdade que extrapola os limites do respeito para consigo e para com os outros. Por sermos pluriculturais é que uma antropofagia cultural é defendida no sentido de nos alimentarmos dessa diversidade e nos potencializarmos ao invés de querermos impor a vigência de uma única cultura tida como a melhor. É nessa relação entre sujeito e objeto (seja este objeto uma caneta, uma obra de arte, e até mesmo a própria natureza) que se dá o conceito de estética. É a maneira sensível pela qual o observador lança um olhar também sensível sobre o objeto percebido. A partir da definição de aura - projeção de significados que os indivíduos lançam sobre um objeto -, Boal acredita que a mesma pode ser uma arma tanto de dominação quanto de libertação. Antes de chegar à aura dos objetos artísticos ou obras de arte, ele inicia seu pensamento acerca dos objetos religiosos e seu valor político. Os significados que estes objetos recebem por parte de quem os detêm (sacerdotes, bispos, etc.) são usados para dominar os fiéis de forma a não lhes darem acesso, conhecimento a esses mesmos significados. É essa falta de conhecimento que gera a passividade. A falta do saber, do educar-se tira o direito do indivíduo de ser sujeito de si e de sua história, restando apenas que este caminhe limitado a indicações dos que detêm da informação. Assim também acontece com as obras artísticas. Além de privar a população dos significados e desta produzir seus próprios significados, os dominantes atribuem os significados que lhes convém. Se tanto o conceito de Estética e o de aura se dá na relação entre sujeito – objeto, o veto desse direito de poder perceber os objetos (e objeto refiro-me a todo e qualquer fenômeno passível de pesquisa, de percepção, de compreensão) anestesia o indivíduo e o adestra a ser um mero reprodutor de sensações. Desta maneira, cada dominante dita suas verdades absolutas e únicas. Antes mesmo do nascimento, o feto já é informado socialmente e culturalmente através das suas primeiras sensações. Desde o ventre, o bebê já percebe através dos seus sentidos. Por isso mesmo, é que estes são tão importantes ao falar-se de opressão ou libertação. As sensações são atreladas a emoções que, por sua vez, se registram em nossa memória sempre de forma intensa – seja prazerosa ou dolorosa. Conforme um estímulo novo, acessamos em nossa memória aquela sensação/emoção já registrada e, assim, partimos de parâmetros e paradigmas. Vale ressaltar que esta afirmação não exclui o fato de o indivíduo poder manifestar-se contra aquela ou outra memória acessada através da dúvida e/ou da sua reedição. O pensamento sensível é anterior ao simbólico. Acredito que o segundo necessite do primeiro. É nesse primeiro pensamento que a criança percebe que faz parte de um mundo e de que pode interagir com ele e transformá-lo. Ao passo que nos tornamos adultos, a palavra (escrita e oral) e a língua se tornam também importantes até pelo fato de no pensamento ainda só sensível, as crianças terem contatos com o idioma por parte do universo adulto da qual elas fazem parte. O pensamento simbólico nasce do pensamento sensível pela relação do sujeito com a palavra (objeto). A palavra já existe no sensível pensado desde bebê. A diferença está justamente na relação. Se neste primeiro (sensível) a palavra existe pelas sensações/emoções/memórias que causam no sujeito, ela existirá no simbólico pelo seu conceito. Aqui, o autor fala dessa relação a partir dos significantes e significados de uma mesma palavra. No sensível, ambos estão juntos porque o significante e o significado referem-se à mesma coisa e, por isso concreto. Já no simbólico, eles estão separados porque nem sempre a mesma palavra (significante) refere-se ao mesmo significado, por isso abstrata. Exemplo: MANGA. Se a manga faz o cachorro salivar é porque ele entende que a palavra manga refere-se a um único significado porque o seu significante vem atrelado ao prazer que é esse único significado (sensação+emoção+memória). Esse seria o pensamento sensível. Agora, quando a mesma palavra MANGA pode tanto significar fruta quanto parte de uma camisa, ela já fará parte do simbólico, pois é o símbolo da fruta ou da camisa a que me refiro e o cachorro não saberá distinguir somente pelo conceito de um ou de outro. O simbólico surge da necessidade de se querer falar e não, só sentir. E o sensível faz com que o que é dito seja sentido por quem diz e por quem escuta. Assim, ambos coexistem. Desta forma, os significados atribuídos sejam a uma obra como a uma palavra, podem ser utilizados enquanto armas tanto de opressão quanto de libertação. Aquele que detém destes significados oprimi e/ou liberta-se. Para Boal a palavra nasce do grito animalesco e se torna lei e dogma através do seu significado. Consequentemente, estamos falando de opressão. Se uma palavra ou a estruturação de mais de uma palavra (uma frase ou um pensamento, por exemplo) tem o significado, o sentido ou a imagem que algum indivíduo lhes atribua, este alguém tem o poder sobre o discurso. Se uma pessoa tem de aprender a dirigir porque isto significa que todo mundo tem de dirigir porque assim tem de ser ou porque é preciso para encurtar a distância entre dois pontos, ela será dogmaticamente oprimida a ter de aprender a dirigir. Isso, se esta pessoa desconhece, por exemplo, que a mesma frase “Você tem de aprender a dirigir” signifique que assim pensa uma parte da sociedade dominante capitalista que incentiva o consumo inconsciente. “Você tem dirigir” também pode significar a reprodução de um discurso antigo e dogmático por aqueles que desconhecem outras opções de transporte como a bicicleta, por exemplo. A palavra, o pensamento vira uma lei que pode dominar a partir do sentido que lhe é empregado e por perpetuar por gerações através do seu caráter indiscutível torna-se um dogma opressor. Tem de ser assim porque tem de ser assim. Ambos pensamentos sensível e simbólico juntos nos dão uma maior percepção da realidade. Como cada um será vivido pelo indivíduo vai depender da cultura, pois os mesmos também são reflexos dela. A razão está também na sensibilidade, pois sentir é pensar com os sentidos. Por esta razão que toda arte é política e nos faz pensar. Apesar da importância da apreciação de ambos pensamentos, o simbólico tende a ser mais aviltado pelo indivíduo. Desta forma, nossa sensibilidade vai sendo encurtada a cada geração. O artista não foge a esta regra a menos que ele se dê conta e resolva fazer algo.

Capítulo 2 – Do pensamento estético à concreção artística.

A subjetividade da arte.

“Ficaríamos paralisados se tivéssemos que ver e ter consciência de tudo que olhamos; escutar e ter consciência de tudo que ouvimos; tocar e ter consciência de tudo que sentimos, cheiramos e gustamos, tal o acúmulo catastrófico e torrencial das informações recebidas. A Natureza é vertiginosa, não somos capazes de viver essa vertigem.” (BOAL, p. 97).

“Tudo é trânsito neste mundo – cada um de nós e cada império, Romano ou dos Mil Anos; cada nação e o mapa-múndi – tudo muda: eu mesmo, quando me nomeiam Augusto Boal. Qual? Sou quem fui antes de escrever esta última linha ou aquele que ainda não escreveu a próxima? Sou um rio de Crátilo:5 em mim, correm águas que não corriam. Outras correram e jamais voltarão rio acima – escondem-se no mar.” (BOAL, p. 100).

Palavras são meios de transporte.

“Palavras são perigosas – cuidado! Designam conjuntos, mas ignoram unicidades. Negros e brancos, homens e mulheres, proletariado e campesinato são conjuntos criados pelo pensamento e pela imaginação, inspirados em realidades sensíveis, mas que não existem como concreção física. São, mas não existem. O que existe corporeamente é este negro e aquela branca, esta mulher e aquele homem, esta camponesa e aquele operário.” (BOAL, p. 101).

“Conjunto é sempre algo mais que a soma de suas unidades – é sinergia! Assemelha-se à segunda estrutura de cordas da cítara, cordas musicais que vibram embora não sejam tocadas pelo músico – apenas pelas ondas sonoras que as primeiras cordas produzem (...). Podemos falar em proletariado, família, pátria etc. para designarmos propriedades específicas desses conjuntos – cientes, porém, da sua transitoriedade. Não podemos eternizar o conceito de palavras que eternizam conjuntos que não são eternos. O proletariado do qual falava Marx no século XIX não é o mesmo proletariado estadunidense do século XXI. Semelhanças existem... e imensas diferenças.” (BOAL, p. 102).

“Para que sejamos capazes de apreender o uno e não apenas os conjuntos aos quais pertence, alguma outra mediação se torna necessária para evitarmos as imprecisões de darmos o mesmo nome, boi, a cada membro da boiada, pois esse gado é feito de unicidades bovinas e não de massa açougueira. Cada vaca tem sua personalidade: Mimosa, Estrela, Esmeralda... – são vacas. Boiada é sinergia.” (BOAL, p. 105).

O artista e sua arte, artista-indivíduo e cidadãos-artistas.

“Ao não se deter, porém, na comum percepção que constrói conjuntos analógicos ou complementares – nem diante das imagens pré-fabricadas, dos sons estereotipados e palavras vazias que expressam o Pensamento Único dominante –, o artista avança, sente, toca, vê e ouve a potência, não só o ato; ultrapassa as aparências do real e revela percepções e aspectos únicos da realidade encouraçada, ou formas únicas de percebê-la: revela aquilo que as palavras confundem, as imagens escondem e os sons ensurdecem.” (BOAL, p. 106).

Divagações sobre as curiosas semelhanças entre amor e arte.

“Amar é uma forma de arte, e o amante sempre algo de artista tem; arte é amor no sentido em que, sem essa atração que sente o sujeito pelo objeto que também é sujeito, ela, a arte, não existiria. Este livro é minha arte: sem o amor que por ele sinto, ele não existiria ou, pelo menos, não na forma que aqui o tenho fabricado.” (BOAL, p. 110).

“No amor e na arte, a única constante é a inconstância. Ao contrário do que se diz, o amor não é um encontro: é uma perseguição! Aquele ou aquela que está sempre mudando persegue aquela ou aquele que nunca é igual a si mesmo (...). O amor não oferece nenhuma garantia de estabilidade, como sabemos e temos provado. Perdoem-me o lugar-comum, mas, da mesma forma que devemos cultivar a arte com amor, o cultivo do amor é uma arte.” (BOAL, p. 111).

Arte como forma de conhecimento.

Eu se transforma em nós – extraordinário salto. Nós e os artistas, eu e nós – plateia. Juntos, descobrimos a descoberta que fez o artista. Arte é, a um só tempo, individual e social: ao dizermos nós, descobrimos nosso abrangente eu. Digo eu, e somos nós. Podemos estar todos juntos diante de atores, bailarinos ou telas de cinema, ou podemos, solitários, observar um quadro ou escultura – a pluralização se opera, ainda que invisível.” (BOAL, p. 112).

A famosa Teoria dos Neurônios Estéticos.

“As sinapses se multiplicam e se diversificam na medida em que são estimuladas. Quanto mais conhecemos, mais cresce nossa capacidade de conhecer. Quanto mais me ponho a pintar, mais invento como usar pincéis e tinta, como se fosse pintor. Quanto mais me ponho a cantar, mais conheço a extensão da minha voz como cantor. Quanto mais fizer bailar minhas palavras, mais aprendo a amá-las, como se fosse poeta.” (BOAL, p. 116).

“Pedindo antecipadas desculpas aos neurocientistas, quero batizá-los de neurônios estéticos porque é essa a função da Estética: através dos sentidos emocionados, luzir razões, promover transformações.” (BOAL, p. 117).

“Todos esses circuitos modificados retornarão às camadas subcorticais, de onde, por sua vez, irão influenciar a recepção de novas mensagens com as quais guardem alguma relação: os primeiros sons influenciarão a recepção dos novos sons; as primeiras imagens, a de novas imagens; as velhas palavras serão confrontadas com novas palavras; velhos conceitos com conceitos novos; primeiros valores com valores recém-chegados. Todos esses primeiros arcaicos não são imutáveis e podem ser modificados, substituídos ou erradicados, porque não são definitivos – nada no ser humano é definitivo, a começar pela vida! Quanto mais arcaicos, porém, mais resistentes serão a qualquer transformação.” (BOAL, p. 117).

Metáfora – translação e transubstanciação.

“A metáfora, no sentido etimológico de translação e transubstanciação, transpõe algo que existe no contexto cotidiano para um contexto diferente – como palavra deslocada do seu texto para outro. Ou constrói, em outra substância, imagens da realidade original, como um quadro ou uma estátua.” (BOAL, p. 119).

“Faz parte da nossa estética criar condições para que os oprimidos possam desenvolver sua capacidade de simbolizar, fazer parábolas e alegorias que lhes permitam ver, a distância, a realidade que devem modificar.” (BOAL, p. 122).

Exemplo grego – só exemplo.

“Protágoras foi um desses criativos sofistas. Contava-se dele uma história que fazia seus interlocutores pensarem de verdade, a fundo, sem repetir frases feitas e conceitos estabelecidos pelos aristocratas, que não permitiam o pensamento livre, isto é, não permitiam pensar: ‘O jovem Euathlus queria ser seu aluno e foi procurá-lo. Protágoras, era grande orador, portanto, advogado. Como não tinha dinheiro, o aluno propôs pagar suas aulas no fim do curso, com o salário que receberia pela sua primeira vitória em seu primeiro julgamento. Protágoras aceitou. No meio do ano, o aluno desistiu e foi-se embora. Protágoras reclamou em juízo o pagamento dos serviços que já lhe havia prestado como professor, e o aluno foi trazido aos tribunais para se defender. O aluno recusou-se a pagar alegando que não havia terminado o curso nem ganho qualquer causa e que, portanto, a obrigação de pagamento não existia. O juiz lhe deu ganho de causa. Protágoras retornou ao combate e afirmou que, tendo ele, Protágoras, perdido a causa, quem a ganhara havia sido seu exaluno, que, em tão pouco tempo, tanto aprendera. Portando, como ganhador de sua primeira causa, o aluno deveria pagar. O juiz pensou, pesou... olhou os dois lados da questão... paga ou não paga? Examinou bem... e... o que pensaria você, leitor? Diga lá – eu não vou ajudar em nada: pense com sua cabeça, como aconselhava Protágoras!’” (BOAL, p. 124-125).

Monarquias políticas e artísticas.

“Todas as coisas precisam ser nomeadas para que seja reconhecida a sua existência, mesmo invisível. Quem não tem nome, não existe; quem deixa de ser o que era, precisa de rebatismo.” (BOAL, p. 130).

“Muitos sistemas de intenções democráticas, nesta pré-história da humanidade que estamos vivendo, cedo se transformam em monarquias autoritárias, até mesmo em seus opostos, como aconteceu com o Cristo, que não escapou dessa triste alomorfia: sua doutrina de igualdade, fraternidade e carinhosa solidariedade logo foi queimada nas fumegantes fogueiras da Inquisição, junto com Brunos e Joanas, bruxos e feiticeiras... Sua democrática multiplicação de pães e peixes transformou-se em dízimos a serem pagos pontualmente – comércio cuja mercadoria é a ilusão, a esperança e a fé.” (BOAL, p. 135).

“Nos meios de comunicação – fantástica arma de poder e convencimento! –, imperam absolutas as monarquias da palavra, do som e da imagem, transformadas em latifúndios da informação. Imagem, palavra e som não circulam livres na sociedade – são canalizados pelas estações de rádio e TV, pelos livros, revistas e jornais, escolas e universidades, e pela propaganda na beira da estrada. Tudo isso tem dono! Vivemos no mundo virtual desses três impérios. Palavra, som e imagem são livres enquanto possível criação acessível a todos os seres humanos, mas os meios de comunicação que os fazem circular são privativos do poder econômico que os fabrica, padroniza, difunde, controla e usa.” (BOAL, p. 136).

“Convém não esquecer que ser humano é ser artista e ser artista é ser humano. Arte é vocação humana, é o que de mais humano existe no ser. Para alguns de nós, tornou-se profissão, mas continua sendo uma democrática vocação. Nenhum de nós tem que ser melhor que ninguém; cada um de nós pode sempre ser melhor que si mesmo.” (BOAL, p. 138).

A linguagem estética do poder.

“Os animais privatizam o espaço e o espaço privatizado é excludente: esta é a minha casa, o meu quintal, o meu latifúndio; não é a tua casa, o vosso quintal ou a nossa terra. Não nosso ou vosso: é meu! Inicia-se a luta, feroz ou ardilosa, pelo espaço, que se tornou extensão do corpo do dono, seja leão, tigre ou, no campo, grileiros.” (BOAL, p. 139).

“No mesmo mês de janeiro, a ONU revelou que existem 950 milhões de famintos na terra... mas as nações ricas não moveram meia palha, nem gastaram um só centavo para salvá-los da tortura da fome. Dez por cento do que gastaram com bancos e banqueiros teriam bastado para alimentar esses milhões de famintos durante dez anos. A crise que os preocupa é sempre a crise dos ricos, não a dos pobres; crise do sistema financeiro, não da barriga vazia. Será que a mesma Estética será válida para os dois lados?” (BOAL, p. 140,141).

Sociedades espetaculares e sociedades do espetáculo.

“As sociedades são espetaculares no sentido estético da palavra, isto é, como organização sensorial de um ato, uma relação humana, um evento. O comer solitário em um botequim da esquina já contém elementos culturais do espetáculo que é um jantar em família; um só indivíduo ao telefone prenuncia, em gestos e voz, uma teatral reunião de negócios. As sociedades jamais deixam de ser espetaculares porque todo espetáculo é uma confrontação de poderes, e todas as relações humanas são confrontações de poder.” (BOAL, p. 141).

“Os espetáculos da sociedade do espetáculo são revelados e reconhecidos como tais dado o seu caráter de exibição e a clara divisão entre espectadores e espetáculos, uns lá, outros cá, enquanto os espetáculos do cotidiano das Sociedades Espetaculares são, ou se tornam, inconscientes. Podem e devem ser revelados pela arte – todas as artes!” (BOAL, p. 142).

 “O espetáculo expõe aos nossos sentidos não apenas o seu titular principal, mas toda a hierarquia, desde o mais poderoso senhor até o último coadjuvante. Todos desempenham papéis, ora distantes do epicentro, ora como papagaios-de-pirata, no ombro de alguém importante, espinha reta ou curvada. Quanto mais próximo do protagonista, maior seu poder. Tocá-lo: sonho supremo.” (BOAL, p. 144).

“Terminada a festa – sociedade do espetáculo –, mesmo assim os rituais do cotidiano – sociedade espetacular – continuam: o imperador caminha para sua cama como se fosse Imperador; os serviçais, como obedientes serviçais, caminham para os seus porões; o tom de voz de um e outros mantém características de opressor-oprimidos, mantém as estruturas do poder. A festa é um espetáculo da sociedade... O pós-festa é espetacular, embora inconsciente.” (BOAL, p. 145).

“Nenhuma sociedade sobreviveria sem ser espetacular, e sem espetáculos – ambos têm função civilizatória. Sua vetustez, porém, engessa a criatividade e proíbe a invenção.” (BOAL, p. 147).

A invasão dos cérebros

“Invasão dos Cérebros: a mesma tática que se usa para invadir um país – primeiro bombardeios, antes que entre em ação a infantaria de ocupação: primeiro TV e cine... depois o mercado vem atrás.” (BOAL, p. 149).

“Mesmo sendo um sistema coercitivo que tinha por meta política acomodar suas plateias ao conformismo social, não estimular seu inconformismo, seu desejo de transformar o mundo – ao contrário do Teatro do Oprimido! –, a tragédia estimulava o pensamento e podia, como em Eurípides, questionar a sociedade e seus valores. Era o balé das ideias, não o das balas perdidas!” (BOAL, p. 150).

“Com este lixo ético despejado em seus perplexos neurônios, os vulneráveis espectadores vão, mais tarde, receber as novas informações. Não podemos nos espantar diante de crimes de Columbine e Virgínia Tech, que foram prenunciados e promovidos por esse tipo de cinema, nem podemos esquecer que as torres gêmeas de Nova York foram destruídas em um filme de ficção antes de serem filmadas em chamas na tragédia verdadeira.” (BOAL, p. 152).

“Essa apropriação indébita de significados e significantes, proposital esvaziamento da palavra – que, podendo significar qualquer coisa, não significa nada – tem por objetivo desorganizar a linguagem e impedir a formulação de pensamentos coerentes.” (BOAL, p. 153).

“Já não se sabe o que se diz quando se fala! Já não se sabe o que se escuta quando se ouve. A língua, falada e escrita, torna-se obstáculo à comunicação, o oposto daquilo para o que foi criada.” (BOAL, p. 153).

Coroas refratárias e agressivas, mas não indestrutíveis.

“O fanatismo esportivo e religioso, a adoração idolátrica de pessoa ou instituição, o sectarismo político ou quaisquer outros sectarismos – mesmo quando existam razões sociais e econômicas para essa rendição à miopia – são exemplos concretos dessas coroas formadas pela repetição insistente das mesmas informações com o mesmo conteúdo, e pela aceitação de valores não questionados.” (BOAL, p. 156).

“A Estética do Oprimido, democrática e subjuntiva, visa, através da arte, permitir ao cidadão questionar dogmas e certezas, hábitos e costumes que suportamos em nossas vidas. Visa analisar cada ação e cada fato que acontece dentro de circunstâncias concretas. Visa destruir coroas de circuitos neuronais refratárias e agressivas... mas não indestrutíveis.” (BOAL, p. 158).

A objetividade da arte.

“É neste nível ético que se devem mover o Teatro e a Estética do Oprimido: não bastam boas ideias, é necessário que sejam justificadas; não basta trabalhar com ideias que já existem, é necessário inventar, porque todas as situações, mesmo repetidas, são sempre novas.” (BOAL, p. 160).

Do processo estético ao produto artístico.

“Quando, porém, àqueles que não pertencem à monarquia artística, quando às pessoas comuns se oferece a possibilidade de realizar um processo estético do qual foram alienadas, este processo expande suas possibilidades expressivas atrofiadas, aprofunda sua percepção do mundo, dinamiza seu desejo de transformá-lo.” (BOAL, p. 162).

“Ao fabricar sua obra, o novo artista, mesmo que não chegue a produzir obras para museus, sente o prazer de ser reconhecido como insubstituível naquilo que faz e que só ele ou ela sabem fazer do jeito que fazem.” (BOAL, p. 162).

O trânsito social do singular ao plural.

“Não se trata apenas de tornar agradável o espetáculo, torná-lo estético, mas de descobrir a verdade escondida atrás dos nossos hábitos mecanizados de pensamento e comportamento repetitivo do dia-a-dia.” (BOAL, p. 164).
O método subjuntivo.

O teatro conjuga a realidade no tempo presente do modo indicativo – ‘Eu faço!’ – ou no gerúndio – ‘Estou fazendo’. A TV e a publicidade, no modo imperativo – ‘Faça!’ No Teatro do Oprimido, a realidade é conjugada no modo subjuntivo, em dois tempos: no pretérito imperfeito – ‘...e se eu fizesse?’ – ou no futuro – ‘...e se eu fizer?’” (BOAL, p. 165).

“Mesmo que os participantes dos nossos projetos em escolas, saúde mental, camponeses, pontos de cultura façam qualquer coisa admirável, ainda assim devemos pedir alternativas: e se fosse diferente, como seria? No final de cada sessão, sim, devemos decidir o que fazer, como fazê-lo e quando.” (BOAL, p. 165).

Revolução cultural não dogmática.

“A Estética do Oprimido é uma forma essencial de combater a Invasão dos Cérebros porque coloca o oprimido como protagonista do processo estético, não simples fruidor de arte.” (BOAL. p. 166).

“Não leva a cultura ao povo, mas oferece meios estéticos necessários para o desenvolvimento da sua própria cultura, com seus próprios meios e metas. Não apenas educa nos elementos essenciais do como se pode fazer, mas, pedagogicamente, estimula os participantes a buscarem seus caminhos.” (BOAL, p. 166).

“Uma Estética democrática, ao tornar seus participantes capazes de produzir suas obras, vai ajudá-los a expelir os produtos pseudoculturais que são obrigados a tragar no dia-a-dia dos meios de comunicação, propriedade dos opressores. Democracia estética contra a monarquia da arte.” (BOAL, p. 167).

“Até mesmo os Jogos Sinestésicos já estão no nosso Arsenal e são os que mais estimulam a criatividade artística porque, ao traduzirem uma sensação em outra, uma ideia em sensação ou uma sensação em ideia, ao traduzirem a memória em emoção e esta naquela, estimulam a totalidade dos neurônios estéticos envolvidos no tema.” (BOAL, p. 169).

“Nenhuma estrutura de dança, música ou teatro, no entanto, é inocente ou vazia: todas contêm a visão do mundo de quem a produz. Contêm sua ideologia, que, através da forma artística, é incorporada por quem as pratica... a menos que disso esteja consciente.” (BOAL, p. 169).


RESUMO COMENTADO.

O amor e a arte são de natureza estética, pois não precisam de explicações. É preciso sentir antes de qualquer coisa. Num mundo tão cheio de informações, imagens, palavras e sons, não somos capazes de perceber tudo a nossa volta. Não somos oniscientes. Então, simbolicamente criamos conceitos que agrupam as coisas ou por analogia ou por complementaridade. E assim, são formados os conjuntos. Os indivíduos ou objetos de um conjunto podem ou não ser semelhantes e se sendo, não quer dizer que são idênticos. Existem as diferenças, a diversidade, a pluralidade. Por isso, por mais importante que este agrupamento didático seja interessante e funcional não podemos generalizar pejorativamente e esquecer que vida é movimento e que as coisas mudam, as pessoas mudam. Inclusive, os conceitos quiçá os preconceitos. Será também através das palavras que nos comunicaremos e apesar de em algumas vezes serem as mesmas palavras, nem sempre serão os mesmos significados que dependem desses indivíduos mutantes e seus conjuntos culturais. A arte também é uma forma de comunicação que não necessariamente verbal onde o artista se comunica com sua plateia. Universos pessoais contam histórias culturais e comuns a todos no que diz respeito ao que temos de interseção: a vida em suas dores, prazeres, inquietações e mudanças. E o conjunto passa a ser coletivo. Agrupados porque juntos somos mais fortes no que se tange o bem maior. Por isso, é preciso muito cuidado com a arte que contemplamos, pois ela pode muito bem nos oprimir impondo-nos suas verdades ou nos desequilibrar com suas dúvidas e nos fazer cair em meio a um precipício de questionamentos. Há quem prefira andar sobre o chão firme das verdades absolutas. Eu já prefiro me atirar em queda livre. Ao infinito que escapa das formas, dos limites, fronteiras e conceitos. Nesse livro e em toda sua pesquisa artística, Boal propõe uma reflexão acerca da transformação e a sua concreção. As metáforas são uma ótima forma de mudança, onde aquele que a produz está criando um novo olhar sobre a realidade. A quebra das tradições, dos dogmas também é uma forma de transformação. Os rituais enquanto espetáculos que acontecem nas sociedades devido a seu caráter de repetição precisam de mudanças a fim de que o novo ganhe lugar e, assim, evoluamos. Só permanece no mesmo lugar quem está feliz ali ou já não acredita mais na mudança, perdeu a fé e a esperança. A classe dominante – sejam aristocratas, burgueses, intelectuais, políticos, empresas, etc. – teme a transformação justamente porque lhes é cômodo o lugar do poder, de poder. Os rituais assim como os dogmas impõem suas regras, onde alguns serão vetados de agirem livremente e outros obrigados a agirem. O autor aqui não questiona esses ritos, pois ele acredita que os mesmos são civilizatórios no sentido de expressar e conceituar determinadas civilizações. Eles nomeiam as culturas. O que se é questionado aqui é a não transformação dos mesmos. A tradição mantida como eterna custe o que custar. Por que não posso questionar a nossa cultura? As culturas? Por que não posso romper com paradigmas, verdades absolutas, inclusive as minhas próprias? Para mudar é preciso pensar. Por que mudamos? Por quem mudamos? Para quem? O que mudo? O que me muda? E à medida que mudamos, conhecemos e nos desenvolvemos para além de nós mesmos. Transcendemos. E assim, aprendemos. Mas aqueles que detêm o poder da informação, através da palavra, da imagem e do som, estarão dispostos a informar as suas verdades, os seus significados e sentidos acerca da vida. Desta forma, reproduziremos seus pensamentos. Aqui, o autor fala da importância da Televisão e do cinema no momento de impor o pensamento único e inquestionável apoiados na cultura absoluta do consumismo. Regras de comportamento assim como desejos, vontades, sonhos são depositados nos telespectadores diariamente de forma que deixam de serem indivíduos pensantes para compor uma massa heterogênea não no sentido coletivo/solidário, mas enquanto grupos reprodutores consumistas. A cultura que lhes deveria ser pelo viés da produção e por meios estéticos pessoais, passa a ser apenas um produto de fruição. A relação existente entre sociedade e cidadão não se dá de forma que este último possa, deva e/ou tenha o direito de intervir. O que era para ser uma relação em via de mão dupla apenas acontece em uma única mão: sociedade > indivíduo. As coisas devem ser aceitas sem questionamentos enquanto fatalidades imutáveis.

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