terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Relatório do ato performático "Banquete do nada".


Este ato performático surge a partir da materialidade, do pré-texto 'Pássaro azul'. Como dialogar este pré-texto com o contexto político que acabamos de viver ? Lendo a peça teatral, deparo-me com o nono quadro:

FELICIDADE GORDA - Sou a mais gorda entre as Felicidades, a Felicidade-de-ser-rico.  Em nome de minhas irmãs, peço a você e a sua família que venham honrar o nosso jantar infinito. Ficarão no meio do que há de melhor entre as verdadeiras e grandes Felicidades deste mundo.  Permitam que lhes apresente as principais dentre nós. Aqui está minha nora, a Felicidade-da-vaidade-satisfeita, cujo rosto é tão graciosamente balofo. (A Felicidade-da-vaidade-satisfeita cumprimenta com ar protetor.) Aqui estão  a Felicidade-de-beber-quando-não-se-tem-mais-sede, e a Felicidade-de-comer-quando-não-se-tem-mais-fome, que tem pernas de macarrão. (Cumprimentam, cambaleantes.) Aqui, a Felicidade-de-ignorar-tudo, surda como uma porta, e a Felicidade-de-não-compreender-nada, cega como uma toupeira.  Esta é a Felicidade-de-não-fazer-nada, e a outra, a Felicidade-de-dormir-mais-do-que-o-necessário; tem mãos de miolo de pão, e olhos de geléia de pêssego.  Aqui, finalmente, a Risada Espessa, aberta até as orelhas, e à qual ninguém pode resistir ...  

E a partir desta fala, começamos a discutir como seria este ato. E as ideias foram surgindo até definirmos que se trataria de um banquete. Mas como pensar em comida quando se tem tanta gente passando fome ? E assim, surgiu o banquete do nada. Personagens que mais do que simples ou complexos indivíduos, representam felicidades ilusórias e disfarçadas baseadas na ignorância de uma população pobre para que se mantenha a riqueza dos que dominam e controlam. Fazer um banquete com comida seria um ato contraditório pois apresentando-o na rua, que 'doce violência' seria essa aos estômagos de quem não tem o que comer. E, então, surge um texto de Brecht adaptado:

'A Padaria'

Vocês que acabaram
De comer
Permitam que mostremos
Nosso incansável esforço para conseguir algo para comer
A comida mais modesta já é suficiente.
Pedimos que vejam
Nosso esforço incansável para conseguir trabalho!
Infelizmente, comida e trabalho
Estão submetidos a leis eternas,
Desconhecidas.
Mas não param
De cair
Pelas grades no asfalto
Pessoas sem nenhuma marca
Ou indicação 'cair'
De repente, sem ruído, em rápida queda
Pessoas que caminham ao nosso lado, felizes, caem
Em meio à torrente humana
Seguindo seleção imprecisa,
Seis entre sete caem, mas o sétimo
Vai ao refeitório.
Quem de nós será o próximo?

E, assim, fomos nos encontrando nas reuniões do PIBIC para irmos dando continuidade a este processo criativo. Começamos a confeccionar flores azuis (referência ao Pássaro azul e ao fato de estarmos em época natalina que também a peça teatral traz). Abaixo, segue todo o roteiro do ato performático que realizamos na Praça da Inglaterra, no Comércio, Cidade Baixa.

MACRO-ROTEIRO DE AÇÕES: ATO ESPETACULAR “BANQUETE DO NADA”

Roteiro tecido a partir de impressões sobre o nono quadro da obra O Pássaro Azul, de Maurice Maeterlinck e o texto inicial da peça dramática A Padaria, de Bertolt Brecht. As ações foram pensadas visando uma interação direta com o espaço da Praça da Inglaterra, no centro comercial de Salvador.

01. PRIMEIRA AÇÃO: Esta ação refere-se a chegada dos performers no espaço em um processo com três instantes distintos. No primeiro instante varrem a praça coletivamente, num movimento convergente das extremidades para o centro da praça, enquanto varrem cantam a canção de Nelson Cavaquinho “É tão triste cair” (ver abaixo); depois recolhem o lixo. Após, ambientam o espaço com defumadores e flores azuis de papel (as flores completam espaços da natureza em desfalque. Ex: portal ou um troco sem vida). Toda a ação é feita com distanciamento atoral e com a participação de todos. Depois iniciam uma caminhada por um espaço demarcado da praça por uma lona azul que demarca o espaço/área de jogo, interagem com os transeuntes a partir do exercício do “cair” e da frase do texto de Brecht “Pessoas que caminham ao nosso lado, felizes, caem”. Outras frases podem ser incorporadas a caminhada.

"Ontem subiste, eu desci
Hoje eu subo, tu desces
É tão triste cair.”

02. SEGUNDA AÇÃO: Esta ação refere-se à cena específica do banquete. Um performer toca um sino de metal, todos os que varriam vestem seus figurinos assumindo personagens e exibindo máscaras corporais correspondentes às felicidades citadas por Maeterlinck no Pássaro Azul. Após todos vestidos e instalados no espaço, o performer toca novamente o sino convidando as felicidades para um banquete. O performer apresenta todas as felicidades como se fosse um desfile de celebridades, cada uma recebe uma placa com a identificação de seu status (invejosa, vaidosa, gulosa...). Após apresentadas, todas se sentam e o performer serve os pratos brancos vazios, talheres e um guardanapo de pano. Toca-se novamente o sino anunciando que podem comer a vontade o primeiro prato – a cada novo prato servido toca-se o sino e os pratos anunciados são correspondentes a trechos do nono quadro da obra de Maeterlinck (ex: um manjar de doce crueldade). As felicidades demonstram muita satisfação e desejo sobre o banquete, elegantemente estendem os guardanapos e vendam-se. Ali comem um banquete imaginário, com os olhos vendados. As felicidades são exageradas e podem ser grotescas, estranhas, rudes, sarcásticas.

03. TERCEIRA AÇÃO: Esta cena refere-se ao momento de transição e finalização do ato. O último prato servido poderá ser trazido pela personagem Luz, que serve em uma baixela (ou algo parecido) um pássaro azul para cada felicidade. Este momento marca a transição das “felicidades gordas” para uma tomada de consciência sobre a felicidade simples. Os performers continuam o andamento da cena em um ritmo desacelerado, retiram a vedas e iniciam um processo lento de passagem do grotesco ao humano. No momento da cena a personagem Luz faz-se uma leitura de um recorte do texto de Brecht.

(LEITURA DO TEXTO 'A PADARIA')

Motivamos a partir do contato com o pássaro a transformação das personagens e do espaço. Quando a Luz coloca o pássaro nos pratos das felicidades estas despertam, retiram as vendas dos olhos e criam uma relação com aquele objeto de encantamento e brincadeira. Após este momento instalamos na praça enfeites, linhas, macramê, em fim, tecemos um espaço lúdico e fantasioso – um presente de natal (poderemos utilizar frases do “Pássaro Azul” nesta ação). Podemos finalizar com uma ação no contexto de coralidade com todos os performers encontrando-se no centro da praça e juntos no exercício do “cair” não caem e finalizam sustentando-se pelos apoios dos ombros.

SENSAÇÕES AO FINAL DA APRESENTAÇÃO.

Como cada um escolheu qual felicidade iria representar segundo um pecado capital, eu escolhi a felicidade de não se fazer nada, pensando na preguiça. E o teatro tem este poder de nos confrontar com nossos próprios demônios. Enquanto, buscava corporalmente expressar esta inação da minha felicidade, eu me via buscando em mim mesmo em quantos momentos eu fui aquela felicidade, a de não fazer nada. Não me refiro ao descanso, ao ócio criativo, mas à preguiça em excesso de não fazer nada por ninguém nem por si. De como atamos nossas mãos e pés, quando sendo livres deveríamos voar como o Pássaro azul. Agradeço a todo o grupo Célula por esta investigação preciosa que me faz questionar a cada dia o meu lugar e o do outro.

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