Introdução.
O presente artigo surge como atividade final de semestre do curso de licenciatura em teatro da UFBA, da disciplina Organização da Educação Brasileira e ministrada pelo docente Carlos Alberto Ferreira da Silva. Este artigo fora escrito segundo orientações feitas pelo professor, onde deveríamos escolher um tema discutido em sala de aula e desenvolvê-lo dialogando com o PCN de artes e outras referências. O tema 'o movimento e o não-movimento corporal nas escolas' foi tirado do texto "A educação e a fábrica de corpos: a dança na escola", da Márcia Strazzacappa. Como pesquisador do PIBIC e orientado pela professora Célida Salume, venho pesquisando a respeito da materialidade nos processos criativos a fim de sistematizar um repertório de procedimentos criativos em teatro a partir de materiais em potencial, ampliando a formação do profissional de ensino do teatro. O objetivo deste artigo é repensar o tema 'o movimento e o não-movimento corporal nas escolas' a partir da proposição de oficinas teatrais para professores do ensino público utilizando da técnica do contato improvisação enquanto materialidade para o processo criativo. Pensando deste lugar em que ocupo como pesquisador da licenciatura em teatro, é que descubro a importância de se investigar mais a fundo a opressão corporal em que vivemos e da importância do papel do professor de qualquer área de conhecimento e da sua capacitação nessa pesquisa como o orientador entre a sociedade e o indivíduo/aluno/criador.
"Por isso - porque eu acho que a primeira função da educação é ensinar a ver - eu gostaria de sugerir que se criasse um novo tipo de professor, um professor que nada teria a ensinar, mas que se dedicaria a apontar os assombros que crescem nos desvãos da banalidade cotidiana. Como o Jesus menino do poema de Caeiro. Sua missão seria partejar 'olhos vagabundos'..." (ALVES, Rubem. A complicada arte de ver. Folha online, S.Paulo. 2004.).
O movimento e o não-movimento corporal.
O sistema capitalista vigente no Brasil é determinante numa educação adestradora e tecnicista que visa capacitar uma mão de obra oprimida e ignorante a obedecer. Segundo Augusto Boal existem duas classes de indivíduos: os que dominam e os que são dominados. A dominação se dá pelo poder que um indivíduo exerce sobre o outro. Este poder não se concentra numa só pessoa. O poder não é inerte. Ele passa de mão pára mão. O oprimido torna-se o opressor e precisa ser combatido. Seja este, um poder emocional, financeiro, etc. Como dominar uma sociedade pelo capitalismo, por exemplo? Segunda Fayga Ostrower, o ser humano é um ser sensível/consciente/cultural, ou seja, um individuo que vive em meio a uma cultura social e sensivelmente percebendo-a, desenvolve sua consciência. A cultura não é determinante, mas influencia muito na construção consciente do indivíduo. É uma relação dialética esta que existe entre indivíduo e cultura. Se a cultura interferi de forma veemente na conscientização do ser, a própria cultura seria um caminho para a dominação, o 'colonialismo cultural'. Este colonialismo se dá invariavelmente através de uma sensibilidade coagida e alienada de si. Ora, se é através dos sentidos que percebemos, sentimos e refletimos a cerca das experiências de mundo, também será através destes relacionamentos afetivos que a dominação induzirá a um pensamento único e autoritário. E se já somos analfabetos na escrita e na oralidade, esta dominação dos sentidos nos analfabetiza esteticamente a ponto de reprimir nossa criatividade e de nos privar de uma participação mais ativa na nossa própria produção cultural. E é através dos meios de comunicação como televisão, cinema, teatro, música, dança, jornal, revista entre outros que esta dominação se dá com padrões de beleza, de moda e, inclusive, de comportamento. Desde pequenos, somos instruídos a nos comportarmos segundo as especificidades dos gêneros. 'Meninos não choram', 'rosa é cor de menina', 'menino é futebol', 'menina brinca com boneca', 'menino brinca com carro'. Somos seres em criação constante, em evolução e nos privar deste desenvolvimento (espiritualidade) é ir contra as leis que regem a natureza. É experimentando entre acertos e erros que construímos nosso caráter, que construímos uma rede de diversidade biológica e filosófica. Antes das tecnologias atuais, a nossa primeira tecnologia é o nosso corpo. É através dele inclusive que a evolução da tecnologia se dá por possível. Somos corpo. Precisamos dele para falar, ouvir, ver, se comunicar, se expressar. Precisamos dos nossos corpos para criar as máquinas. Mesmo que um indivíduo esteja vegetando em cima de uma cama, seu corpo ainda estará vivo. E é pensando no ser como um corpo orgânico e naturalmente espontâneo como a própria vida que este artigo levanta reflexões a cerca desta opressão corporal que resume em si todas as outras opressões.
"O indivíduo age no mundo através de seu corpo, mais especificamente através do movimento. É o movimento corporal que possibilita às pessoas se comunicarem, trabalharem, aprenderem, sentirem o mundo e serem sentidos. No entanto, há um preconceito contra o movimento. Solange Arruda, na introdução de seu livro arte do movimento, afirma que 'é mais chic, educado, correto, civilizado e intelectual permanecer rígido'. Os adultos, em sua maioria, não se movimentam e reprimem a soltura das crianças." (STRAZZACAPPA, Márcia. 'A educação e a fábrica de corpos: a dança na escola'.).
Os alunos não podem se expressar corporalmente de maneira espontânea nas instituições escolares. É fato que esse tipo de regime acaba reverberando nesses alunos na sociedade como um todo. Mas enfatizemos a escola. Este tipo de imobilidade corporal vai desde a fila feita para entrar na sala de aula, a disposição das cadeiras na sala, a forma como é feita a chamada até a própria metodologia ultrapassada e tradicional que muitos professores insistem em basear todo o processo-aprendizagem do aluno numa transferência de conhecimentos de ordem horizontal. O aluno assim como o espectador de um teatro, assiste passivamente ao que lhe é apresentado. Se o mesmo não é nem sequer estimulado a pensar sobre o que está vendo, como esperar que seus corpos assumissem outra natureza que não a própria passividade. É preciso repensar o teatro, a escola, a educação. De natureza também educadora, o teatro é uma arma política como toda atividade humana, uma vez que é na atividade que desempenhamos um papel.
"Este livro procura mostrar que todo teatro é necessariamente político, porque políticas são todas as atividades do homem, e o teatro é uma delas. Os que pretendem separar o teatro da política, pretendem conduzir-nos ao erro - e esta é uma atitude política. Neste livro pretendo igualmente oferecer algumas provas de que o teatro é uma arma. Uma arma muito eficiente. Por isso, é necessário lutar por ele. Por isso, as classes dominantes permanentemente tentam apropriar-se do teatro e utilizá-lo como instrumento de dominação. Ao fazê-lo, modificam o próprio conceito do que seja o 'teatro'. Mas o teatro pode igualmente ser uma arma de liberação. Para isso é necessário criar as formas teatrais correspondentes. É necessário transformar." (BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. pg. 11)
O problema do desempenhar este papel numa determinada atividade é mecanizarmos a ponto de sempre darmos as mesmas respostas e soluções para diferentes problemas. Um dos papéis não vividos pela educação escolar é o de capacitar e mobilizar o aluno a potencializar sua criatividade enquanto indivíduo social. Voltando ao sistema capitalista, todas as atividades humanas serão voltadas para algum fim lucrativo. Assim, a escola e o teatro também. Então, quem tem nas mãos o poder da educação e da arte conduzirá os alunos/espectadores a repetirem o que lhes fora depositado. O capitalismo é tão manipulador que um dos primeiros argumentos para uma sociedade homofóbica repensar sua fobia era o fato de os homossexuais gastarem mais. Aqui, não há a preocupação de pensarmos o corpo do outro como algo sagrado e livre para se movimentar segundo a sua sexualidade. Para além do ato sexual, a sexualidade é também uma expressão corporal, um movimento. O movimento corporal de um indivíduo irá expressar a sua subjetividade que lhe é pessoal e intransferível, apenas comunicadora. Mas esta subjetividade vem perdendo espaço para a simples reprodução de discursos. Enquanto um corpo rico em potencialidades criadoras, não somos estimulados a desenvolver nossos sentidos. Somos viciados em todos os sentidos. Viciados para que dependamos do vício que sustenta o capitalismo. Um indivíduo que além de ver, é mobilizado a enxergar de fato o mundo a sua volta é um ser livre. Ver, falar, ouvir, tocar são movimentos corporais. Nosso corpo é uma grande máquina que precisa de manutenção diária. Como se movimentar se temos a internet, o carro, o delivery? A humanidade caminha para a preguiça do pensar e do movimentar. Como no filme de animação da PIXAR 'Wall-e', um exemplo de capitalismo (até segunda ordem) saudável que se pauta não no dinheiro em si, mas em como transformar o capitalismo para expressar/criar algo altruísta. O filme fala de uma nave onde moram todos os sobreviventes humanos. O planeta terra fora tão consumido que só sobrou lixo, prédios, areia e baratas. Aqui, na terra, tem o Wall-e que é um robô menos avançado que coleta o lixo e o compacta em caixas que vai estocando umas em cima das outras. Lá na nave, os indivíduos estão todos obesos e usam sempre a mesma cor de roupa. Para trocar de roupa, basta apertar um botão. Só se movimentam sentados e pesados em cadeiras que se locomovem por toda a nave, encontrando outros obesos e suas cadeiras e a cor da moda. Ali, comem, bebem e trocam de cor de roupa. Com telas a um palmo dos olhos, várias informações inúteis vão sendo jogadas fazendo uma lavagem cerebral que os anestesia sensivelmente. Comida, bebida e roupa são anunciadas. Quando uma das telas pifa é que um homem percebe que dentro da nave tem uma piscina e parece tocar a mão de uma mulher pela primeira vez. Esta falta do toque, do abraço, do sentir o outro também parece ser trazida no filme 'Crash'. Este sentimento de violência e raiva que vezes morde o estômago sugere ser proveniente desta falta de toque. E a preocupação é justamente os efeitos colaterais que uma alienação corporal pode causar num indivíduo. Doenças psicossociais como depressão, síndrome do pânico entre outras. Esta alienação e deturpação corporal brasileira é fruto da colonização branco-europeia sobre o corpo do negro, escravizando-o e impedindo-o de jogar capoeira, de dançar. Nós, afrodescendentes é que trazemos na pele, na memória também corporal as sequelas de uma história de opressão. A religião foi e ainda é bastante opressora, principalmente, nas questões do corpo, da carne. O movimento sexual estava apenas para a reprodução. Pessoas do mesmo sexo não podiam mover-se sexualmente entre si. Era e ainda é pecado. Mas apesar de não reconhecer a importância dos movimentos corporais enquanto saúde e direito, muitas destas religiões utilizam da linguagem do corpo para os seus rituais de exorcismo. Perceber esta movimentação corporal na natureza também e dialogar como no caso da yoga e da capoeira que se utilizam de elementos da natureza como a posição do cachorro olhando para baixo (yoga) ou a meia-lua de frente (capoeira) é criar relacionando-se. Criar é viver, é dança, é movimento destes pequenos corpos orgânicos em um corpo maior, a Terra. Os iogues acreditam que nós, ocidentais, vivemos mais na ilusão do que em realidade. Nossas consciências são limitadas no amplo sentido do que seja a ignorância quando deveríam ser limitadas no amplo sentido da forma, do configurar. Vivemos uma falsa democracia. Nosso direito de escolha é vetado não pela direta e transparente censura, mas por uma disfarçada ditadura da moda, dos padrões, do que vende mais. Assim, escolhemos o que nos induzem a querer ter. Nossas escolhas, nossos movimentos se reduzem ao ter. E como ser está relacionado ao movimento da vida que se é sendo, ter reduz, ou melhor, imobiliza. Você tem e ponto final. Ser está mais voltado para o gerúndio que é o movimento do verbo. Mesmo que se vá tendo, interrompe-se o movimento da vida no ter. O ter está para a ilusão e o ser para a realidade, pois que assim somos. Até que sejamos consumistas inconscientes, será esta a nossa realidade mesmo que não a vejamos. Não porque não a saibamos, mas pelo fardo peso de não mudarmos. Sem transformação não há conscientização. Saber não nos basta, é preciso que se transforme.
"O domínio de uma nova linguagem oferece, à pessoa que a domina, uma nova forma de conhecer a realidade, e de transmitir aos demais esse conhecimento. Cada linguagem é absolutamente insubstituível. Todas as linguagens se complementam no mais perfeito e amplo conhecimento do real. Isto é, a realidade é mais perfeita e amplamente conhecida através da soma de todas as linguagens capazes de expressá-la." (BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. pg. 180).
Considerações finais.
A ciência traz em sua origem a dúvida, pois é a pergunta que move a pesquisa, que a norteia. Porém, a ciência tem se encarcerado em paradigmas e verdades absolutas, combatendo todo tipo de estímulo novo. A começar pelo conceito de que teatro não é ciência, não é uma área de conhecimento.
'A manifestação artística tem em comum com o conhecimento científico, técnico ou filosófico seu caráter de criação e inovação. Essencialmente, o ato criador, em qualquer dessas formas de conhecimento, estrutura e organiza o mundo, respondendo aos desafios que dele emanam, num constante processo de transformação do homem e da realidade circundante. O produto da ação criadora, a inovação, é resultante do acréscimo de novos elementos estruturais ou da modificação de outros. Regido pela necessidade básica de ordenação, o espírito humano cria, continuamente, sua consciência de existir por meio de manifestações diversas.' (PCN)
É pensando no teatro/educação e sua importância na capacitação de professores que finalizo este artigo com considerações importantes a serem feitas. Qual a importância de oficinas teatrais para professores do ensino médio público? Por que a técnica do contato improvisação é funcional ? A educação em arte propicia o desenvolvimento do pensamento artístico e da percepção estética, que caracterizam um modo próprio de ordenar e dar sentido à experiência humana: o aluno desenvolve sua sensibilidade, percepção e imaginação, tanto ao realizar formas artísticas quanto na ação de apreciar e conhecer as formas produzidas por ele e pelos colegas. Uma função igualmente importante que o ensino da arte tem a cumprir diz respeito à dimensão social das manifestações artísticas. A arte de cada cultura revela o modo de perceber, sentir e articular significados e valores que governam os diferentes tipos de relações entre os indivíduos na sociedade. A arte solicita a visão, a escuta e os demais sentidos como portas de entrada para uma compreensão mais significativa das questões sociais. A arte ensina que é possível transformar continuamente a existência, que é preciso mudar referências a cada momento, ser flexível. O objetivo das oficinas teatrais é proporcionar aos professores da rede de ensino médio público a oportunidade de aprenderem a 'pensar com o corpo'. Os professores, ao sentirem no corpo estas descobertas, podem compreender melhor o que se passa nos corpos de seus alunos, crianças ou adolescentes. Ao experimentarem o prazer do movimento e os benefícios que estes trazem, tanto para o físico quanto para o mental, podem ver com outros olhos estas atividades na escola. Ao mexer com o corpo, ao criar, ao se expressar, estes professores estarão adquirindo informações, sensações que seguramente irão, mais tarde, nutrir e enriquecer suas análises e discussões teóricas.
"Gostaria de ressaltar o comentário de uma professora da rede pública aposentada, Gilcélia, que trabalha atualmente no setor privado. Esta tentou escapar de uma das atividades propostas que consistia em ser carregado pelo grupo em duas situações distintas: com o corpo contraído e com o corpo relaxado. Apesar de sua tentativa de fuga, não teve escapatória e foi logo carregada. Quando se esticava no chão, aguardando ser levantada, não parava de exclamar: Vocês não vão conseguir! Vocês não vão me agüentar! Qual não foi o seu espanto (e também do grupo) ao perceber que estava a dois metros do chão, segura por dezenas de mãos que a suspenderam acima do nível de suas cabeças. Ao final do trabalho, emocionada, percebeu o quanto havia sido importante participar do exercício, pois percebera que na verdade a imagem que tinha de si própria não correspondia à realidade. Sentiu-se mais leve e feliz. Seguramente, esta sensação lhe ensinou muito mais e foi-lhe muito mais importante que qualquer discussão teórica a respeito dos benefícios do desenvolvimento de um trabalho corporal dentro da escola." (STRAZZACAPPA, Márcia. 'A educação e a fábrica de corpos: a dança na escola'.)
Por esses motivos descritos acima é que acredito que o contato improvisação seja uma boa técnica corporal para jogar com os professores. Além da semelhança aos jogos teatrais em seu teor improvisacional e de pergunta/resposta, a forma como o contato com e entre outros corpos produz uma atmosfera de confiança e de concentração estimulando a percepção e aguçando os sentidos, tirando os professores da comodidade e economia de ações. É por meio dessa sensibilização através também do outro que penso estar à chave para a criatividade e, assim, iniciar um processo criativo.
Referências Bibliográficas.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 2001.
BOAL, Augusto. A Estética do oprimido. 2008.
BOAL, Augusto. O teatro do oprimido e outras poe´ticas políticas. 2005
CURY, Augusto. Análise da Inteligência de Cristo / O mestre da sensibilidade. 2006.
PCN de artes.
STRAZZACAPPA, Márcia. A educação e a fábrica de corpos: a dança na escola.
ALVES, Rubem. A complicada arte de ver. Folhaonline, S.Paulo. 2004.
JAPIASSU, Ricardo. Princípios pedagógicos do teatro.
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