Resumo.
Atualmente, a criatividade tem sido limitada, corrompida e impossibilitada de ser realizada nos termos da espontaneidade e da liberdade. Correspondendo, assim, a uma exigência de mercado capitalista predatório que vende a própria cultura como produto do folclore. Buscando reverter este quadro, a capoeira angola surge como possibilidade de mobilizar o indivíduo de forma a se redescobrir verdadeiramente criativo.
Nowadays, the creativity has been limited, corrupted and prevented to be realized spontaneously and freely. In this way, creativity is corresponding to a capitalist market´s exigency that sells his own culture as a folklore´s product. Searching to revert this situation, the capoeira angola rises as a mobilize´s possibility to make the person more truthful creative.
Introdução.
O presente artigo surge do contato com a matéria optativa Capoeira I na Escola de Educação da UFBA e também do seu contato com o PIBIC (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica)- sendo eu graduando no curso de licenciatura em artes ciências na Escola de Teatro da UFBA - cujo plano de trabalho é dialogar a Estética do Teatro do Oprimido de Augusto Boal com o uso de materialidades no processo da criação cênica.
Durante a matéria, tive contato teórico com diversos autores que pesquisaram a capoeira angola por diferentes perspectivas. Desde um conceito sócio/etnográfico, passando por um ensaio a cerca da sua historiografia até a um ensaio da capoeira angola enquanto pedagogia pluriétnica corporal e ambiental. Já no final do semestre, apresentei um seminário sobre uma tese escrita por uma atriz negra (Evani Tavares) intitulada 'Capoeira angola como treinamento para o ator'. Nesta tese, a Evani relaciona a capoeira com o teatro através da pré-expressividade do ator. Para ela, a capoeira angola e seu caráter de jogo (lúdico/improvisacional) de perguntas e respostas se aproxima e muito da linguagem teatral. Em paralelo, vim dando continuidade a minha pesquisa no PIBIC partindo de referências bibliográficas como Augusto Boal e Fayga Ostrower. Foi lendo o livro 'Criatividade e processos da criação' da Fayga que os primeiros contatos teóricos a cerca da criatividade começaram a se esboçar. Segundo a autora, a criatividade está relacionada ao viver de forma geral. Para ela, o indivíduo criativo é aquele que espontaneamente cria em diálogo consigo, com o outro e com o meio social em que vive, a sua cultura, durante a sua vida. Por isso, somos seres sensíveis/conscientes/culturais. Já nas leituras com Augusto Boal, eu venho descobrindo como essa sensibilidade - onde ocorre a criatividade - estaria sendo reprimida a fim de desconscientizar e controlar o indivíduo também culturalmente.
É na discussão após a apresentação do meu seminário que o artigo começa a se desenhar a partir de pensamentos a cerca de uma opressão cultural negra em favor de uma ainda atual colonização branco européia. E de como vestígios da escravidão em conjunto com as atuais opressões, ainda alienam a sensibilidade de corpos oprimidos, impedidos de livremente se expressarem. E assim, uma criatividade esteriotipada, dependente de conceitos e padrões estéticos e voltada para um mercado capitalista e consumidor.
"Na concepção trazida neste estudo, toda iniciativa que opta por perpetuar uma forma padronizada de treinamento e formação do ator, dissociada de qualquer conexão local está em descompasso com os reclames desta época e com a própria História do teatro. Para que sejam, de fato, eficazes, proposições de formação e treinamento do ator hoje, além de fornecer ferramentas suficientes à sua adequada instrumentação para cena, devem considerar suas necessidades e especificidades culturais, o que possivelmente conduzirá a uma melhor compreensão de si, autocrítica, visão de mundo e diálogo com o universo circundante." (TAVARES, Evani. Capoeira angola como treinamento para o autor. 2008. pgs. 18/19)
Partindo da afirmação de Boal que diz que todo cidadão é ator, aproveito desta citação de Evani para pensar a capoeira angola como treinamento do indivíduo em si. O objetivo deste artigo é fomentar a discussão a cerca da capoeira angola enquanto técnica de treinamento para o indivíduo redescobrir sua criatividade espontânea através do teatro/educação e, assim, libertar-se das correntes da opressão.
Criatividade.
"Criar é, basicamente, formar. É poder dar uma forma a algo novo. Em qualquer que seja o campo de atividade, trata-se, nesse 'novo', de novas coerências que se estabelecem para a mente humana, fenômenos relacionados de modo novo e compreendidos em termos novos. O ato criador abrange, portanto, a capacidade de compreender; e esta, por sua vez, a de relacionar, ordenar, configurar, significar."(OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 2001. pg. 09)
A criatividade está praticamente interligada a todo o viver. Criamos praticamente o tempo todo. Criamos à medida em que nos relacionamos consigo e com os outros. Criamos individualmente e coletivamente, amparados pelo nosso meio social, nossa cultura. Segundo Fayga Ostrower, o indivíduo é um ser sensível/consciente/cultural, ou seja, um ser que sente e pensa em diálogo com sua cultura. A criatividade se dá no campo da percepção de si mesmo, do outro e do seu meio social. Perceber é sentir pensando a respeito da sensação. A criatividade também se dá no campo da espontaneidade e da liberdade de expressão, seguindo uma delimitação não de fronteiras mas em respeito a especificidade do próprio criar, configurando-se assim formas. Perceber a liberdade isenta de delimitações é colocá-la num lugar pejorativo, não livre. Por exemplo, uma liberdade sem delimitações que permita aos indivíduos de uma sociedade fazerem o que bem querem pode criar absurdos como a escravidão, a homofobia, entre outros.
"A sociedade humana está (desde o momento que foram criadas as sociedades centralizadas, a propriedade privada e a exploração do homem por outro homem) tomada em todas as suas instâncias por valores morais (culturais) e econômicos, que nutrem as classes privilegiadas com os lucros oriundos das produções coletivas das várias classes de artesãos e técnicos. As hierarquias totalitárias, antes de serem caracterizações morais (culturais) de sociedades com o poder centralizado, "os vários impérios ou hegemonias geopolíticas de todos os tempos", são construídas nas nossas infâncias a partir de valores (éticos) educacionais (lúdicos, moral, sexual, ecológicos, coletivos e espirituais) não solidários (individualistas) presentes, principalmente, nos modelos familiares e escolares que se distanciaram dos propósitos diversificadamente solidários (sustentáveis) bastante expressivos em cada fenômeno e forma de vida que a natureza inventou." (CONCEIÇÃO, Jorge. Capoeira Angola: educação pluriétnica corporal e ambiental. 2009. pg 86).
É aqui que a influência cultural sobre os indivíduos é forte na construção das suas personalidades, porém não é determinante. É preciso perceber que cultura é esta e o seu papel enquanto indivíduo. Individualidade difere de individualismo no sentido de que a primeira é referente a singularidade de cada um e a segunda refere-se ao egoísmo destrutivo que não pensa no coletivo. É neste diálogo entre indivíduo e cultura que ocorrem as transformações, possibilitando a mudança da realidade. A cultura é imprescindível para que o indivíduo se comunique. A cultura agrupa e convenciona comportamentos sociais, valorizando-os como referenciais aos seus indivíduos. Mesmo que um indivíduo não concorde em muitos aspectos com a sua cultura, ele precisará dela para tanto. No nosso atual sistema capitalista de cultura consumista, a criatividade vem sendo deturpada. Segundo Augusto Boal, em seu livro 'A Estética do Oprimido', as classes dominantes vem usando os meios de comunicação para poder impor um único padrão cultural ditando o que é bonito, certo e o que vende mais. Desta forma, competimos predatoriamente para sermos os melhores no atendimento destes padrões. Criar tornou-se vender. Nossa sensibilidade é trocada pelo adestramento de condutas e comportamentos. Uma vez que os modelos e seus conceitos já estão pré-estabelecidos, não experimentamos mais. Apenas, seguimos as instruções. Jornais, revistas, novelas, teatro, cinema, música são veículos para o poder da informação. Quem tem este poder, controla. Uma sociedade consciente é perigosa justamente porque põe em perigo esta relação de poder do maior para o menor. E assim, somos corpos oprimidos que não sabem e não se expressam. Não criam.
Capoeira.
"A Capoeira Angola é uma técnica corporal, "uma forma de conduta e intervenção com o outro, indivíduo ou ambiente", tão pluralmente caracterizada de linguagens, que, o colonizador percebeu o quanto ela significava para as afirmações das identidades ancestrais não só dos Bantos, mas, de todas as identidades étnicas africanas escravizadas. Como as formigas e as abelhas da citação de Capra, os africanos escravizados, não poderiam recuperar seus modos de viver livres a partir de movimentos isolados ou individualistas." CONCEIÇÃO, Jorge. Capoeira Angola: educação pluriétnica corporal e ambiental. 2009. pg. 87)
Somos filhos de uma colonização exploratória, o que justifica inclusive o tipo de educação que é pensado e ensinado em nossas escolas, igrejas, televisão e dentro de nossas próprias casas. Uma educação inquestionável tradicional, passada de geração para geração, chegando a ser cultural. A colonização branco europeu no Brasil buscou extinguir todos e quaisquer sinais de criatividade que ameaçassem o equilíbrio sócio-cultural-econômico vigente na época. Então, a liberdade dos negros - que tiveram seus direitos e raízes negados e elevados à condição de crime - tornou-se a ameaça primordial. Ser negro era crime. Praticar sua cultura também. Aliás, sua cultura deixara de ser cultura. Cultura era ser branco e negro ser escravo. Nossos ancestrais negros foram julgados por uma sociedade branca que os marginalizaram culturalmente mas que não conseguiram acorrentar sua sensibilidade e sua consciência que os faziam livres por dentro. Foram encarcerados com outros negros de diferentes partes da África a fim de dificultar a comunicação entre eles e assim, enfraquecer o coletivo. Tiveram sua cultura presa pelas grades, correntes e chibatas mas eram livres em suas memórias e crenças. A capoeira é criada em resposta a esta repressão colonizadora. Em diálogo com a cultura indígena e popular brasileira, a capoeira surge angolana porque praticada em sua maioria por angolanos. E por isso, tão perseguida e proibida, pois reforçava e contava a história de um povo perseguido e escravizado culturalmente. A capoeira é um exemplo claro de criatividade ao configurar-se em uma nova forma de comunicação e expressão. Como toda criação, ela nasce do relacionamento entre os envolvidos. Neste caso, do relacionamento dos negros entre si, dos negros com os brancos e sua cultura de escravidão, dos negros com a sua ancestralidade angolana, dos negros com os folguedos e por aí vai. É conhecendo sua cultura que o indivíduo se reconhece. Então, por isso era fundamental que se acabasse com a cultura negra na época da colonização. Apagar a identidade de um povo é torná-lo submisso, pois sem história, sem raízes não são donos de si e, sim, escravos.
Conclusão.
Com o passar dos anos, a capoeira foi deixando de ser crime e sofreu mudanças em sua tradição com a sistematização de Mestre Bimba que a partir da capoeira angola criou a regional, uma capoeira mais técnica e de caráter de competição. Em defesa da tradicional capoeira angola, temos Mestre Pastinha que viveu e passou para seus discípulos os princípios de uma cultura preocupada com a biodiversidade e com a solidariedade. Por estes princípios cosmovisionários (CONCEIÇÃO, 2009) é que a capoeira angola se encontra nesta busca pela mobilização da criatividade seja no aluno, seja no ator, seja no indivíduo em si. Em seu livro 'Capoeira angola: educação pluriétnica corporal e ambiental', Jorge Conceição descreve nosso planeta como um grande corpo orgânico que é nutrido e nutre. Desta forma, ele faz um paralelo interessante entre este corpo maior (planeta) e nossos corpos menores (nós, seres vivos), defendendo a responsabilidade e dádiva que temos em podermos viver uma relação de sustentabilidade não só pelo nosso planeta mas por nós mesmos. Em nossa memória também afrodescendente, trazemos uma coerção da cultura negra que se reflete em nossos corpos. Logo, advindos de uma ditadura corporal histórica, era de se esperar vestígios, sequelas, alienação. As consequências desta e de outras opressões se refletem numa sociedade com doenças psicossociais (CURY, 2006) como depressão, ansiedade, falta de criatividade. Precisamos ser os melhores numa cultura que acredita que tempo é dinheiro. E assim, assassinamos nosso potencial criador para correspondermos doentiamente e injustamente a um padrão de conduta cruel e autoritário. Somos adestrados a vender. É pensando em possibilidades de reverter este quadro que a capoeira angola vem surgindo como um mobilizador de fundamental importância e necessidade não só na área do teatro/educação. É preciso destravar o corpo para expressarmos livremente.
"Portanto, fazer os corpos crescerem psicoespiritualmente e biomecanicamente, está associado ou condicionado às incorporações de valores culturais eticamente solidários que buscamos e somamos ao nosso caráter. Se pudermos criar possibilidades para resignificarmos "o jogo da capoeira", que não percamos tempo; "o jogo lúdico" ("o não jogo competitivo") é cosmovisionário e envolve um, dois e mais indivíduos numa teia ecológica, solidária e espiritualmente digna na diversidade qualquer que seja. Assim, a Capoeira Angola, se apresenta no seu conteúdo mais profundo; meditativa combinada aos valores do princípio único ("princípio da unidade") e capaz de tornar todos vitoriosos!" (CONCEIÇÃO, Jorge. Capoeira Angola: educação pluriétnica corporal e ambiental. 2009. pg 101/102)
Só se é possível jogar/brincar a capoeira a partir do encontro de duas ou mais pessoas. Pois além dos jogadores, existem os músicos que tocam e cantam, dando ritmo e enredo ao jogo. É um jogo de perguntas e respostas corporais, onde o objetivo se encontra na busca de desequilibrar o adversário. Os golpes ou movimentos do conteúdo da capoeira conformam o corpo do jogador para além da sua comodidade e economia de ação (EVANI TAVARES, 2008), uma vez que os comumentes pontos de apoio já cotidianos (os dois pés) são substituídos por mais ou menos pontos e em diferentes partes do corpo. Como a 'meia-lua de compasso', por exemplo, onde o jogador (sendo um compasso) usa de três pontos de apoio: sendo dois nas mãos e um num dos pés. É neste caráter de jogo lúdico que a capoeira angola se aproxima do fazer teatral.
"No século XVIII, Rosseau e Pestalozzi salientavam a importância dos jogos como instrumento formativo, pois além de exercitar o corpo, os sentidos e as aptidões, os jogos também preparavam para a vida em comum e para as relações sociais. Froebel dizia que a criança, para se desenvolver não devia apenas olhar e escutar, mas agir e produzir sobre a natureza (...) O jogo representa um desafio para a criança, a qual ao construir a solução estará desenvolvendo seu lado criador." (FREITAS, Jorge Luiz de. Capoeira infantil: jogos e brincadeiras. 2003. pg. 13 e 17)
Referências Bibliográficas.
FREITAS, Jorge Luiz de. Capoeira infantil: jogos e brincadeiras. 2003.
CONCEIÇÃO, Jorge. Capoeira Angola: educação pluriétnica corporal e ambiental. 2009.
OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 2001.
TAVARES, Evani. Capoeira angola como treinamento para o autor. 2008.
BOAL, Augusto. A Estética do oprimido. 2008.
CURY, Augusto. Análise da Inteligência de Cristo / O mestre da sensibilidade. 2006.
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